Nestes últimos dias, consagrei a minha atenção à auscultação de partidos políticos, instituições religiosas e outras da sociedade civil, personalidades e antigas altas figuras do Estado, cuja experiência constitui património da Nação. Fi-lo movido pelas preocupações que partilho com os cabo-verdianos relativamente à tensão política que se vem acumulando no país. Como principal Ouvidor da República, escutei com empenho este conjunto representativo de vozes, procurando captar as perceções e inquietações do país face à atual conjuntura. Estas audições irão prosseguir, na linha daquilo que tem pautado a minha atuação, desde o início do mandato.
É verdade que não enfrentamos uma crise político-institucional: as instituições mantêm-se funcionais e os mecanismos constitucionais têm sido respeitados. Contudo, essa normalidade não nos deve iludir nem dispensar da reflexão sobre a inclusividade do sistema e sobre a necessidade permanente de consolidar os alicerces da democracia. Esta tem funcionado como espaço legítimo de divergência e de competição, regulado por regras consensuais e aceites por todos. As eleições tornaram-se um hábito enraizado, cujos resultados são reconhecidos sem contestação, e as alternâncias e transições de poder têm decorrido de forma regular, pacífica e exemplar.
Tudo isto é necessário, mas não é suficiente. É nossa obrigação contribuir para dissipar tensões latentes e para fortalecer os valores democráticos. Há sinais de erosão silenciosa que minam a confiança dos cidadãos nas virtualidades da democracia e no futuro do país. Deploro o desserviço prestado por aqueles que, instigando ódios e beligerância, procuram esgarçar o delicado tecido da convivência democrática. A política não pode ser transformada numa arena de extermínio simbólico do adversário, numa lógica amigo/inimigo, que aprofunda polarizações e multiplica violências discursivas. Esse caminho não nos conduz a bom porto.
Uma das consequências mais graves da falta de diálogo é a caducidade generalizada dos mandatos de órgãos externos ao Parlamento – alguns há mais de um ciclo completo. Acresce a dificuldade de entendimento entre órgãos de soberania, entre o poder central e o local, entre situação e oposição. Ora, à medida que nos aproximamos de um novo ciclo eleitoral, mais imperiosa se torna a serenidade, apenas possível através do diálogo e da negociação, evitando a excessiva judicialização da política. Importa também sublinhar que o Direito da Oposição tem assento constitucional e que a sua observância é condição fundamental de vitalidade democrática.
As próximas eleições devem ser vividas como um momento de elevação cívica, em que se confrontam ideias, propostas e projetos para o país. É fundamental que os atores políticos saibam transformar esse período num espaço de pedagogia democrática, privilegiando a serenidade e a clareza das opções apresentadas aos cidadãos. O que está em causa não pode ser a crispação nem a erosão da confiança entre cabo-verdianos, mas sim a renovação dessa confiança, mediante um debate leal e construtivo.
É crucial investir de forma séria e consequente na despartidarização da Administração Pública. A máquina do Estado deve servir a Nação e os cidadãos, e não interesses partidários de circunstância. O mérito, a competência e o desempenho profissional devem sobrepor-se à lealdade política, porque é disso que depende a eficiência das instituições e a confiança do povo. Só uma Administração Pública sólida, imparcial e centrada no interesse público poderá assegurar políticas consistentes, continuidade na execução das reformas e prestação de serviços de qualidade, independentemente das alternâncias de poder. Esta é, por isso, uma das chaves para a modernização do Estado e para a credibilização da democracia.
A atitude do Presidente da República, ao longo do seu mandato, tem sido a de apelar ao bom-senso e ao diálogo. Reiteramos, nesta ocasião, a necessidade de saber encontrar as melhores soluções de entendimento e a adoção de postura de sentido de Estado entre os diversos atores políticos. Há que respeitar as instituições e saber dialogar. Só através de uma inequívoca aderência aos procedimentos próprios da democracia estaremos a contribuir para a dissipação das tensões entretanto acumuladas.
Precisamos de recuperar o papel de cada ator político e desbloquear reformas estruturantes que vêm sendo adiadas com graves prejuízos para a competitividade da economia, para o progresso social e para a qualidade de vida dos cidadãos. Refiro-me, em particular, às reformas do Estado, à saúde, à educação, aos transportes e às relações externas. Para um pequeno Estado arquipelágico como Cabo Verde, estas matérias exigem consensos amplos. As nossas decisões devem ser tomadas com rigor, transparência, responsabilidade e respeito pela legalidade, evitando ruturas que se traduzam em descontinuidade ou regressão nos serviços essenciais.
Também a sociedade civil, a juventude e a nossa diáspora devem ser chamadas a este esforço coletivo. A vitalidade da democracia não se esgota nos partidos e nas instituições: precisa da energia crítica dos jovens, da participação ativa das organizações cívicas, da criatividade dos agentes culturais e do contributo único da diáspora. Só através do envolvimento de todos poderemos cultivar um ambiente de serenidade e compromisso com Cabo Verde, que fortaleça a confiança mútua e prepare o país para os grandes desafios do futuro.
Concluo reiterando o meu apelo ao diálogo e ao consenso. Um apelo pungente à união de todos, nas ilhas e na diáspora, em torno do que é essencial. Só assim poderemos resgatar a credibilidade da política e dos políticos, revitalizar a democracia, reafirmar o nosso compromisso com as liberdades fundamentais e acelerar o processo de transformação rumo à prosperidade. Cabo Verde precisa de atores políticos assertivos, generosos e comprometidos com as verdadeiras causas do país e com o devir coletivo. Cabo Verde precisa de cidadãos que, no pleno gozo dos seus direitos, participam plenamente na vida da República, com espirito crítico e forte engajamento cívico. Cabo Verde de uma sociedade civil autónoma e largamente empenhada nas grandes causas nacionais. Juntos, podemos!
É este o compromisso que devemos assumir perante as gerações presentes e vindouras: um Cabo Verde mais unido, mais justo e mais confiante no seu destino comum.