As minhas primeiras palavras são de saudação a todas as entidades aqui representadas e em especial à Associação METRA-PRAC, a quem expresso o meu reconhecimento e a minha satisfação pela louvável iniciativa de promover este encontro sobre a Medicina Tradicional e Complementar no Sistema de Saúde cabo-verdiano, inserido nas celebrações do 50º aniversário da nossa independência. Agradeço, pois, à METRA-PRAC também pelo convite para presidir esta cerimónia de abertura e aproveito esta oportunidade para felicita-la pelo trabalho continuado de resgate, valorização e promoção daquilo que constitui parte integrante da nossa identidade, os saberes e práticas de cura que, ao longo das gerações, têm acompanhado a vida das nossas comunidades.
A medicina tradicional africana é muito mais do que um mero conjunto de terapias alternativas. É um sistema holístico e complexo de conhecimentos, práticas e crenças que encara a saúde como um estado de equilíbrio entre o indivíduo, a comunidade e o ambiente que o rodeia. É um património imaterial de valor incalculável, transmitido oralmente de geração em geração, que reflete a profunda conexão espiritual e ecológica do nosso continente.
Em Cabo Verde, como em toda a África, esta sabedoria ancestral manifesta-se nos quintais e nos mercados através do uso de plantas medicinais que constituem para muitas comunidades o primeiro e mais acessível recurso de saúde. A medicina tradicional é a guardiã silenciosa de um saber milenar, transmitido de geração em geração que durante séculos foi a nossa única farmácia, o nosso único hospital, o nosso principal bastião contra a doença e o sofrimento. Mesmo atualmente, estas práticas ainda prevalecem nas nossas comunidades, especialmente nas ilhas mais periféricas e nos meios mais rurais, onde o acesso à medicina convencional ainda não é equivalente ao que acontece nos meios urbanos.
E não resisto a contar-vos aqui um episódio. Fui visitar uma zona muito distante de Santo Antão, Figueiras, e quando cheguei lá, depois de quase uma hora e meia a pé, a andar sob um sol abrasador, chegamos ao posto sanitário e estava lá o enfermeiro para me receber a mim e ao presidente da Câmara de Ribeira Grande de Santo Antão, e toda a comitiva. E ele expôs-me os problemas do posto sanitário.
Não havia medicamentos. Ele só recebia da delegacia de saúde, da farmácia pública, apenas alguns medicamentos para os doentes crónicos. E contou-me que, face penúria, estava a solicitar, a pedir, imaginem, a magistratura de influência do Presidente da República para adquirir medicamentos. E disse-me que, e contou-me que uma senhora já de idade, numa noite com muita febre e dores de cabeça, foi lá ao posto e o enfermeiro, depois de ver o grau da febre muito alto no termómetro, e de constatar que a senhora estava efetivamente com intensas dores de cabeça, e disse à senhora que não tinha nenhum medicamento, absolutamente nada. E disse à senhora: “A senhora não tem nenhum chá em casa?”. E a senhora volta-se para ele e disse: “Tenho. Mas eu pensei que o senhor fosse enfermeiro, não curandeiro”. Portanto, mesmo o enfermeiro muitas vezes recorre às plantas medicinais para suprir a falta de medicamentos num posto sanitário distante.
O desejo que hoje aqui nos traz é o de construir pontes, pontes sólidas e duradouras entre este conhecimento ancestral e a ciência moderna. Entre a tradição e a inovação, foi o que o enfermeiro quis fazer perante a senhora. Não se trata de substituir um pelo outro, mas sim de os fundir num abraço de complementaridade. A ciência pode e deve validar, purificar, dosar e otimizar os princípios ativos que os nossos antepassados, com uma sabedoria prática e aguçada, já identificavam.
A tradição, por seu lado, oferece à ciência um universo vastíssimo por explorar, uma perspectiva holística do ser humano, corpo, mente e espírito, que a medicina convencional, por vezes, negligencia. O caminho da integração é, por excelência, o caminho do diálogo, um diálogo franco e construtivo entre os praticantes da medicina convencional e os terapeutas tradicionais. Temos de superar preconceitos mútuos e construir pontes de colaboração baseadas no respeito e no objetivo comum de servir o doente.
Um sistema de saúde verdadeiramente integrado é aquele em que o médico e o terapeuta tradicional podem dialogar e referenciar pacientes, combinando o melhor de dois mundos em prol da saúde e do cidadão. Qualquer estratégia de integração deve colocar as populações no centro, tanto como beneficiárias como protagonistas. Deve promover a formação e capacitação, garantindo que os tradicionalistas possam aceder a percursos de certificação que valorizem os seus saberes.
Mais um episódio. Logo depois da independência, o primeiro curso organizado pelo então Ministério da Saúde e Assuntos Sociais foi para qualificar as nossas parteiras. Não havia enfermeiros e médicos suficientes para dar cobertura a todo o país e a maioria de nós nasciamos com assistência de parteiras.
Mas era preciso melhorar pelo menos as condições higiênicas em que as crianças nasciam. E foi esse um dos primeiros atos do Ministério da Saúde no pós-independência, numa estreita cooperação entre os serviços do Sistema Nacional de Saúde e as parteiras espalhadas por todas as ilhas. Deve reforçar a interface entre centros de saúde e praticantes tradicionais, articulando referências, encaminhamentos e mecanismos de vigilância partilhada.
A inclusão exige também que as políticas públicas corrijam as assimetrias de género e assegurem que as vozes das mulheres, frequentemente guardiãs do conhecimento doméstico e comunitário, sejam plenamente ouvidas. E é que às vezes descuramos essas vozes mais tradicionais e das comunidades.
Terceiro episódio: Construímos a barragem de Banca Furada em São Nicolau. Em 2015 choveu e a barragem não teve água. Toda a água infiltrou-se. E eu, na minha caminhada matinal, ao ouvir o noticiário, a Rádio Nacional entrevistou um senhor da comunidade e o senhor disse: “Também vieram cá esses engenheiros e construíram a barragem aqui (no local) que tem o nome de Banca Furada. Nunca entenderam que aqui era uma banca furada?!” E só aí eu percebi o nome.
Eu fui lá, inaugurei a barragem, nunca tinha prestado atenção ao nome que era Banca Furada. E se os engenheiros tivessem chegado lá e discutido com a comunidade, com aqueles senhores detentores do conhecimento da localidade? Não é? É o que nós devemos fazer em relação a essas vozes que são guardiões do conhecimento nessas diferentes comunidades e nos diferentes domínios da vida comunitária.
É também fundamental assegurar a transmissão deste conhecimento às novas gerações. Em Cabo Verde, como noutros países, sentimos o risco de erosão cultural com os jovens a distanciarem-se progressivamente das práticas ancestrais. A patrimonialização e a oficialização desses saberes, integrando-os nos currículos académicos e promovendo a sua visibilidade social, são essenciais para garantir que esta chama não se extinga.
A experiência da República Popular da China pode ser um exemplo nesta matéria para todos nós. A medicina tradicional pode complementar estratégias de prevenção, promoção da saúde e cuidados continuados, sobretudo quando articulada com cobertura universal de saúde. A integração da medicina tradicional no sistema de saúde não deve ser entendida como regresso ao passado, nem como simples fusão de saberes.
A nossa comunidade académica e científica deixa o desafio de abraçarem com curiosidade e mente aberta o estudo deste riquíssimo universo, pois o seu trabalho é a chave que permitirá descodificar e potenciar o saber ancestral. Aos nossos decisores políticos e governantes africanos, incito a que tenhamos a coragem de legislar, de investir e de integrar, pois a saúde dos nossos povos e a soberania das nossas nações também dependem da nossa capacidade de valorizar o que é nosso.
Aos nossos prezados terapeutas tradicionais, os guardiões da herança dirijo uma palavra especial. O vosso conhecimento é a pedra angular de todo este edifício. A vossa participação ativa e a vossa generosidade na partilha do saber são indispensáveis.
A vós a nossa mais profunda gratidão e o nosso mais sincero respeito. Estou convicto de que as reflexões e as recomendações que emanarão deste encontro não ficarão confinadas a esta sala. Espero que elas possam inspirar políticas públicas, catalisar projetos de investigação e fortalecer redes de colaboração por todo o continente.
Com a esperança renovada no futuro da saúde em África, um futuro que honra o passado e abraça a ciência, declaro aberto este encontro internacional sobre a valorização e integração da medicina tradicional africana nos sistemas nacionais de saúde. Desejo a todos um excelente trabalho e uma profícua troca de experiências. Muito obrigado.
Obrigado.

