No Ofício do Bem Comum, Vol II – Nota introdutória

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1. Após a II Guerra Mundial, na Europa, em vários países, foram adotadas medidas jurídico‐constitucionais para racionalizar o sistema de governo parlamentar então dominante, visando essencialmente mais estabilidade governativa, por meio de um maior equilíbrio entre o parlamento e o governo.

Foram seguidas duas linhas distintas, uma de introdução de mecanismos de mitigação do sistema parlamentar, através, por exemplo, de moção de censura construtiva ou de viabilização de governos minoritários, e, outra, de revalorização da função do Presidente da República, designadamente com a sua eleição por sufrágio popular.

Em França, nos inícios da década de 60, foram reforçados os poderes do Presidente da República, tendo sido considerado por Maurice Duverger uma mudança profunda do sistema de governo até então vigente, dando origem a um novo sistema diferente dos dois conhecidos, o parlamentarismo e o presidencialismo, a que ele denominou de semipresidencialismo. Este novo sistema de governo é caracterizado pela coexistência de um Presidente Da Republica eleito diretamente e que detém significativos poderes e de um Governo responsável politicamente perante o Parlamento.

Seguiu‐se, desde então, uma demorada polémica entre os especialistas na matéria, se teria havido efetivamente uma novação constitucional e sobre a denominação a dar a esse sistema. Deste modo, diferentes nomes lhe foram atribuídos, quais sejam sistema misto parlamentar -presidencial, parlamentar racionalizado, parlamentarismo mitigado etc.

Estou convergente com os constitucionalistas e cientistas políticos que acordam na denominação semipresidencialismo para caracterizar esse sistema de governo, diferente do parlamentarismo e do presidencialismo, constituindo, por isso, uma novação constitucional.

Insisto nesta matéria, já porque estas questões político‐constitucionais devem ser entre nós debatidas com serenidade e sentido de estado, já porque é essencial elevar a literacia político‐institucional no país, maxime entre os atores políticos e a sociedade civil.

2. Nesta linha, considero o sistema de governo caboverdiano semi‐presidencialista.

Ao lado do Parlamento, há um polo autónomo do poder político, o Presidente da República, eleito por sufrágio popular e maioria absoluta dos votos validamente expressos e detentor de relevantes poderes, designadamente nomear o Primeiro Ministro, de acordo com os resultados das eleições legislativas, e os restantes membros do Governo, por proposta daquele; promulgar ou vetar diplomas legislativos; ratificar tratados e acordos internacionais; nomear para altos cargos públicos; dissolver o Parlamento, quando for necessário para garantir o regular funcionamento das instituições democráticas.

O Presidente da República não é governante, é arbitro e moderador do sistema político, Comandante Supremo das Forças Armadas, garante da unidade da Nação e do Estado, da independência nacional e da integridade territorial e, ainda, vigia e garante o cumprimento da Constituição e representa interna e externamente a República de Cabo Verde.

Há um Governo autónomo, que não se confunde com o Presidente da República, responsável politicamente perante a Assembleia Nacional. É quem define e conduz a política interna e externa do país, num quadro de separação e interdependência dos poderes.

Não sendo governante, o Presidente da República tem, todavia, uma forte legitimidade política, pelo facto de ser eleito diretamente pelos cidadãos eleitores e por maioria absoluta de votos validamente expressos. Pode dirigir mensagens à Assembleia Nacional e ao país; aconselhar, sugerir ou advertir, quando necessário. Deve ser, “regular e completamente”, informado pelo Primeiro Ministro sobre os assuntos da política interna e externa do Governo.

No sistema caboverdiano, o Presidente da República é, pois, um ator político relevante e participante ativo na formação da vontade política nacional.

Tendo em linha de conta os seus poderes, designadamente os de Comandante Supremo das Forças Armadas, de garantia da unidade da Nação e do Estado e da integridade territorial, e representante interno e externo da República, deve haver entre o Governo e o Presidente da República a mais estreita articulação, particularmente nas áreas da Defesa Nacional e das Relações Externas.

Nestes domínios institucionais, estratégicos para um pequeno estado insular como Cabo Verde, os consensos entre os órgãos de soberania e entre o Estado e a sociedade civil são essenciais, já porque há uma grande diversidade de atores na politica externa, já porque é preciso que o país fale a uma só voz na arena internacional. Outrossim, a ordem mundial está em disrupção criativa.

As guerras geo‐estratégicas, os conflitos armados, as migrações, as mudanças climáticas, as desigualdades entre países industrializados e desenvolvidos e países pobres e fornecedores de matérias primas estão a provocar grandes movimentações nas placas tectónicas das ordens regionais e da ordem mundial.

Um pequeno estado africano, atlântico e saheliano, de múltiplas e enriquecedoras pertenças, como Cabo Verde, deve abrir espaços de debate, para, a partir da pluralidade de opiniões e de ideias inerente às sociedades democráticas, serem construídos entendimentos e consensos essenciais a um posicionamento inteligente, realista e pragmático do país e a uma inserção competitiva no mundo em reconfiguração. Dito de outro modo, Cabo Verde deve ter uma larga inteligência adaptativa para, em cada momento, posicionar‐se de modo a garantir a concordância prática entre os princípios e valores que defende e os seus interesses, e continuar a ser um país útil no mundo, capaz de realizar com sucesso o seu ideário de desenvolvimento durável.

3. Dentro dessas balizas constitucionais, o exercício em concreto da função presidencial depende do titular do cargo, dado à plasticidade do sistema de governo semipresidencialista. Cada Presidente da República tem uma leitura muito própria dos seus poderes, que são aqueles plasmados na Constituição da República. É claro, também, que o funcionamento do sistema e o seu desempenho dependem, em grande medida, da textura institucional, da autonomia e dinâmica da sociedade civil e do comportamento dos restantes atores políticos, particularmente do Primeiro Ministro e dos par‐ tidos da oposição democrática.

Ao assumir o cargo, propus‐me ser:

  • Um Presidente centrado nas pessoas, defensor das suas liberdades fundamentais e atento às suas aspirações e reivindicações;
    Um Presidente Ouvidor Geral Da República, que escuta a sociedade civil e os cidadãos, essencialmente através da Presidência na Ilha, Presidência na Diáspora e Presidência Temática, enquanto espaços de diálogo e de busca de soluções para os ingentes problemas com que o país se vê confrontado a cada momento;
  • Um Presidente presente e atuante;
  • Um Presidente de afetos, com quem se pode contar;
  • Um Presidente que garante a estabilidade, a continuidade e a perenidade das instituições democráticas;
  • Um Presidente que articula, integra, sugere e aconselha.
    Tenho procurado, com serenidade e sentido de responsabilidade, ser este Presidente. Não tem sido fácil, se considerarmos a fragilidade da sociedade civil, os custos de participação, num ambiente político excessivamente partidarizado, e a fraqueza da imprensa. Por meio da pedagogia da palavra, tenho‐me batido pela criação de boas condições para a discussão de ideias e de propostas, num quadro de liberdade de expressão, aceitação da diferença, confiança mútua entre os atores políticos e abertura a cedências mútuas. Considero ser essencial a despartidarização do espaço público, libertando os cidadãos e a sociedade civil das amarras que lhes são colocadas pelo Estado.

Cabo Verde, para acelerar o passo no seu processo de transformação socio‐económica, terá de imprimir mais sofisticação na formação das políticas públicas e garantir mais eficiência na execução das mesmas e muito mais eficácia nos resultados. Tais desiderandos só são possíveis se criarmos uma cultura do méri‐ to, do trabalho, da produtividade, do rigor, da transparência e da accountability.

No meu ofício do bem comum, a justiça, enquanto trave mestra do Estado de Direito Democrático, particularmente as questões atinentes à disponibilização de meios e à morosidade, a construção de um novo pacto de poder entre as ilhas, com mais descentralização e, consequentemente, mais poderes e mais recursos para as autarquias locais e as regiões, a preservação do património natural e cultural, a economia azul, a mobilidade de pessoas e bens entre as ilhas e para o exterior, o desemprego, o combate à pobreza, à violência com base no género e à violência sexual de menores e a maternidade e paternidade irresponsáveis têm estado na minha agenda pública e nas minhas intervenções.

4. Nestes dois anos de mandato, há ganhos importantes a considerar:

  • Exerci influência positiva para a recomposição do Conselho Superior da Magistratura Judicial e a nomeação do seu Presidente, a nomeação de três juízes do Supremo Tribunal de Justiça e do seu Presidente, garantindo o seu pleno funcionamento e a normalização das relações dos tribunais com os restantes órgãos de soberania;
  • No plano das relações internacionais, efetuei visitas de Estado a Angola, Portugal, Guiné Bissau e Luxemburgo e recebi as visitas de Estado dos Presidentes de Angola, São Tomé e Príncipe e Alemanha;
  • Para além das visitas de trabalho do Presidente Marcelo Rebelo de Sousa e da escala, na Cidade da Praia, do Presidente do Brasil, Lula da Silva, participei em várias cimeiras, designadamente da CEDEAO, da União Africana e da CPLP, nas Jornadas Europeias de Desenvolvimento e em várias Conferências Internacionais;
  • Para além da Presidência honorária do Centenário da Cidade de São Filipe, em cujo quadro patrocinei atividades políticas, culturais e desportivas, realizei visitas a vários municípios, dialogando com as autoridades locais, as universidades, os sindicatos, as ONGs, as Igrejas e os cidadãos, em busca de soluções para os ingentes problemas que afetam o país;
  • No domínio ambiental, fui designado Patrono para a Década do Oceano (2020 – 2030), Champion da União Africana para a Preservação do Património Natural e Cultural de África, visitei o Parque Natural da Baía do Inferno e Monte Angra e os Ilhéus Rombo e fiz vários encontros com ONGs da área da preservação ambiental, para além de Conferências sobre o Oceano;
  • A nível da diáspora, cujo papel reputo de essencial no processo de modernização do país, realizei a Primeira Presidência na Diáspora, nos Estados Unidos da América, que foi um grande sucesso, e efetuei visitas às comunidades no Senegal, Portugal, Guiné Bissau, Luxemburgo e Países Baixos;
  • No quadro do meu ofício do bem comum, tenho dirigido mensagens ao Parlamento e ao país, particularmente nas datas nacionais (5 de Julho, 13 de Janeiro, 30 Anos da Constituição da República), na promulgação de diplomas importantes como o Orçamento do Estado e o Decreto Lei de Concessão dos Aeroportos, pronunciando‐me sobre questões candentes da vida política nacional e internacional e colocando na agenda pública demandas e exigências das cabo‐verdianas e dos cabo‐verdianos;
  • Nestes dois anos de mandato, conforme os compromissos assumidos com os caboverdianos, procedi à restituição do Palácio do Povo à Presidência da República e a sua reabertura enquanto residência oficial do Presidente da República, na Cidade do Mindelo, São Vicente, e lá têm sido realizadas as Reuniões do Conselho da República e do Conselho Superior de Defesa Nacional. Na mesma linha, as cartas credenciais têm sido recebidas alternadamente, no Palácio do Povo, no Mindelo, e no Palácio do Presidente, na Praia.
  1. Tem sido gratificante para mim e motivo de orgulho exercer as altas funções de Chefe de Estado. No estado atual de desenvolvimento económico, social e político do país, o Presidente da República tem um papel fundamental na fomentação da literacia da Constituição, na criação de uma cultura de respeito pelas instituições democráticas, na defesa das liberdades fundamentais e dos direitos das minorias e da oposição democrática, no reforço da descentralização e no empoderamento da sociedade civil e dos cidadãos.

Devemos assumir o processo de desenvolvimento como um longo caminho para a liberdade.

Tenho como principal missão, nestes meus anos de mandato, cuidar de Cabo Verde e liderá‐lo nessa caminhada.

Este livro, que colige os discursos do Presidente da República, durante o segundo ano do mandato, vem nesta linha de trabalho por um Cabo Verde muito melhor para todos.