IGREJA CATÓLICA NA CONSTRUÇÃO DE CABO VERDE
Minhas Senhoras e meus Senhores,
Muito me alegra poder responder positivamente a este honroso convite para participar nesta sessão de abertura do II Simpósio Internacional da Escola Universitária Católica de Cabo Verde. Agradeço, pois, à EU Católica, na pessoa do seu Diretor, o Reverendo Padre José Eduardo Afonso, e ao Grão Chanceler – Dom Arlindo Cardeal Gomes Furtado, por esta oportunidade de celebrar convosco, estes caminhos da educação, acrescentando que tenho acompanhado com particular interesse os primeiros passos e o percurso da EU Católica.
Apraz-me, igualmente, saudar e felicitar a organização deste Simpósio, pela abrangência, qualidade, oportunidade e atualidade dos temas a serem tratados, bem como, pela elevada competência dos intervenientes anunciados, tanto nacionais como internacionais. Nestes três dias, muito ir-se-á refletir sobre a justiça social, a equidade, a redistribuição justa dos recursos, o humanismo, o bem comum, a ética política, o trabalho digno, a responsabilidade social das empresas, valores muito caros à Igreja, e tudo sob um prisma cristão e com a excelência que lhe é peculiar.
De realçar, nesta ocasião, a tradição e o pioneirismo da Igreja Católica no ensino em Cabo Verde. Com efeito, e devido a circunstâncias históricas, ela tomou para si a vocação para a educação e a formação nestas ilhas, em socorro ou substituição, quando o Estado era omisso, tardava ou falhava nas suas obrigações. É neste contexto que foram formadas várias gerações de quadros e intelectuais cabo-verdianos.
Permitam-me uma nota pessoal. Embora não tenha sido seminarista, devo muito da minha formação cívica e cidadã à Igreja de Santa Catarina, onde fui acólito e catequista. Mais tarde chego à política pela via da Doutrina Social da Igreja. Aprendi que a política é um espaço de aprendizagem na relação com o outro e só vale a pena se estiver ao serviço da dignidade da pessoa humana e do bem comum.
Aproveito o ensejo para louvar o facto de a Igreja Católica, em boa hora, ter criado a Escola Universitária Católica de Cabo Verde. Cada vez é mais consensual que um país se desenvolve muito mais, graças ao investimento nos seus Recursos Humanos, e muito menos, devido aos seus recursos naturais. Pode-se mesmo citar o caso de alguns países que são vítimas da “maldição dos recursos” (naturais). A Igreja Católica pode orgulhar-se do seu notável papel no acesso e na elevação do conhecimento nestas ilhas de parcos recursos, desde os primórdios do povoamento, já que a chegada à ilha de Santiago dos primeiros mestres ou educadores Franciscanos se deu em 1466. E a Diocese de Santiago de Cabo Verde é criada em 1533.
De referir que, em 1546, o rei autoriza homens pretos e mestiços, devidamente qualificados, a ocuparem cargos públicos. Mais tarde, a ordenação de sacerdotes, entre os nativos, são iniciativas e estratégias da Igreja que constituíram, sem dúvida, o ponto de partida da aventura civilizacional e marca a importância da Igreja na formação identitária cabo-verdiana. Ela transmitiu valores relacionados com a família, a solidariedade, bem como a defesa de ideais de humanismo, liberdade, igualdade, e contribuiu para o aumento do capital social.
Pode-se afirmar que a Igreja Católica e a língua cabo-verdiana contribuíram decisivamente para moldar e formar a nossa identidade. Tal como a nossa língua materna, a Igreja constitui um traço-de-união entre os cabo-verdianos, no país e na Diáspora. Atualmente, o vigor das festas religiosas, celebradas nas mais diversas comunidades emigradas, evidencia este facto. Constata-se que a religião está intimamente entrelaçada com todos os outros aspetos da identidade de uma pessoa: cultura, etnia, raça, género, orientação sexual e também orientação política.
Recuando um pouco no tempo, é óbvio que muito nos orgulha o facto de, no seu apogeu, Ribeira Grande contabilizar mais igrejas por metro quadrado do que Roma. Mas as conhecidas observações feitas pelo Padre António Vieira, durante a sua passagem para o Brasil, no Natal de 1652, e muitas vezes citadas, são ainda mais poderosas: “Há aqui clérigos e cónegos tão negros como azeviche, mas tão compostos, tão autorizados, tão doutos, tão grandes músicos, tão discretos e bem morigerados, que podem fazer inveja aos que lá vemos nas nossas catedrais”.
Ao longo do tempo, a contribuição da coroa para a implementação do ensino foi bastante reduzida. A criação, em 1772, em Portugal, das primeiras escolas oficiais, extensivas a Cabo Verde, foi só no papel, pois não chegaram a este arquipélago. Em 1837/38, contabilizava-se cerca de uma dezena de escolas do ensino primário em funcionamento, para todas as ilhas. O Liceu Nacional, fundado na Praia, em 1846, teve vida efémera. Assim, a alfabetização e a formação intelectual dos cabo-verdianos, no seu arranque, são tributárias da atividade pedagógica do clero, como já mencionado, praticamente desde o início do povoamento.
Porém, um marco incontornável para a disseminação do saber e a formação da intelectualidade cabo-verdiana é a criação do Seminário-Liceu, por iniciativa da Igreja Católica, em São Nicolau, no ano de 1866, com a finalidade de ordenar sacerdotes e preparar os outros estudantes, no ensino laico, para a vida civil e administrativa. Assim, estes jovens ingressaram no funcionalismo público em Cabo Verde, na Guiné Bissau e nas outras colónias. Podemos considerar que o Seminário-Liceu marca o início da intelectualidade cabo-verdiana, com uma intensa produção literária, através de poemas e crónicas nos jornais da época. Não por acaso, foi em Cabo Verde que eclodiu o primeiro movimento literário africano de expressão portuguesa.
De enfatizar que o Liceu Nacional de São Vicente, criado em 1917, surge na sequência dos magníficos frutos colhidos do Seminário-Liceu, sendo que muitos dos seus professores formaram-se em São Nicolau. Por outro lado, é pertinente mencionar que, nestas instalações da EU Católica, antes Seminário de São José, foram formadas várias gerações de quadros cabo-verdianos, desde os finais da década de cinquenta.
Outro aspeto que merece ser citado é o contributo da Igreja Católica na alfabetização de adultos, candidatos à emigração para os Estados Unidos, quando, no primeiro quartel do século XX, este país proibiu a imigração de analfabetos. Podemos, igualmente, referir as escolas paroquiais e os centros de formação profissionais, iniciativas da Igreja Católica.
A influência na cultura em geral, é notória, com destaque para a música e a formação teatral. Com efeito, a Igreja Católica sempre foi um espaço de ensino musical, mas é de destacar o papel do Seminário-Liceu de São Nicolau, tanto para os estudantes que seguiam a carreira eclesiástica, como por exemplo o Padre Porfírio Pereira Tavares, como para os outros alunos, de entre eles o poeta José Lopes. Mas também se podia citar outros músicos, de gerações posteriores aos do Seminário-Liceu, como “Ano Nobu” (também dramaturgo), Norberto Tavares, Paulino Vieira ou Manel Di Candinho, com maior ou menor grau de influência da Igreja.
Pela sua longa experiência e capacidade de resiliência, a Igreja Católica pode servir-nos de inspiração, em vários aspetos. Nestas cinco décadas de Cabo Verde independente, destaco a questão da descentralização. De uma diocese, em 1975, hoje temos duas dioceses. Podemos particularizar o caso da Paróquia de Nossa Senhora da Graça, na Praia, que seguindo a evolução sócio-económica, foi dividida em oito paróquias, com vantagens evidentes e que deveriam servir de exemplo para a classe política.
A nossa sociedade enfrenta alguns problemas e a Igreja Católica tem desempenhado um papel importante no resgate de valores positivos e na busca de soluções concretas para esses problemas que afetam a nossa comunidade. Muitas vezes, são situações de pobreza, desigualdades sociais, desemprego, violência urbana e outros males. Numa audiência recente concedida ao Administrador da EU Católica, Frei Moisés, tomei conhecimento de dois projetos muito interessantes, cuja implementação teria um impacto bastante positivo na comunidade, e contribuiria, sobremaneira, para a promoção do bem-estar e da educação no país.
Manifesto os meus votos de muitos e continuados sucessos para a EU Católica. Pela data da sua criação formal (2022), é ainda muito jovem, mas que sinaliza um marco na institucionalização de uma experiência secular e reconhecida pela comunidade. Por outro lado, eventos como este Simpósio, com pensadores de renome, são de molde a disseminar o saber, e representam uma abertura à sociedade, pelo que encorajo a que continuem a ser realizados com regularidade.
Tenho constatado, com regozijo, pela sua importância no tecido social cabo-verdiano, nas ilhas e na diáspora, que a Igreja Católica tem crescido muito em Cabo Verde, nos últimos anos. Temos duas Dioceses, três Bispos, um dos quais, Dom Teodoro Mendes Tavares, é Bispo de Ponta de Pedras, no Brasil, e um Cardeal. A criação da EU Católica vem na senda desse crescimento humano e intelectual. Neste mundo cada vez mais complexo e conturbado, precisamos de homens e mulheres intelectualmente preparados para responder, no plano das ideias, aos reptos dos tempos atuais. Temos, hoje, um clero muito mais bem preparado para as lides da Igreja e para os desafios do futuro. Na minha mesa de leitura, tenho, por estes dias, o livro “O Deus que Não Possuímos”, do Padre José Eduardo Furtado Afonso, Diretor desta Escola Universitária, um livro luminoso, uma fonte de reflexão e de conhecimento, essencial para entendermos o papel da Igreja e o trabalho de cada um de nós, na realização do bem comum.
A universidade é espaço de formação, mas sobretudo de criação. Bem-aventurados aqueles que idealizaram e concretizaram tão sublime obra. Que a EU Católica continue a ser um farol de esperança e de conhecimento, acolhendo as reiteradas e consensuais preocupações do Papa Francisco com os vários flagelos que afligem as famílias, as guerras, as migrações, a saúde inadequada, a falta de comida e de água, o tráfico de pessoas, as mudanças climáticas e suas vítimas, sobretudo entre os mais frágeis. Termino com uma pequena citação do Papa: “Não há Democracia com fome nem desenvolvimento com pobreza, nem justiça na desigualdade”.
Este mundo precisa de mais humanismo, mais ética política e mais disponibilidade de todos para trabalharem em prol do bem comum.
Os meus votos de um excelente trabalho a todos.
Muito Obrigado!