AS LETRAS DA LÍNGUA E A MOBILIDADE DOS CRIADORES NA CPLP – Jorge Carlos Fonseca, 19 de Fevereiro de 2019, Póvoa de Varzim

160

Começo esta minha intervenção, pelas Letras e pela Língua. Letras aqui no sentido das literaturas que desta nossa língua nascem, florescem e formam o universo do nosso imaginário colectivo que, desde a mais tenra idade, nos acompanha, atravessando latitudes e geografias, até ao último suspiro, suponho eu, na falta de melhor prova. Este encontro internacional das Correntes d’Escritas, que nesta edição celebra os seus vinte anos de existência – que não podia ter sido mais feliz na sua designação – e que reúne à sua volta pessoas ligadas às letras, escritores, agentes literários, tradutores, editores, jornalistas, críticos, é um território comum, para não dizer Pátria, de todos quantos vivem e respiram literatura, no seu dia a dia, e, por isso, uma celebração da língua, seja ela portuguesa ou castelhana, visto ser um festival de literaturas ibéricas.
Confesso-vos que a Língua Portuguesa é um tema que me é muito caro, que tem atraído muito a minha atenção, sobretudo no exercício das minhas funções, nestes sete anos que já levo de mandato. Compreenderão melhor se vos disser como venho reparando que poucos são os jovens do meu país, inclusive alguns professores, que a falam, que a praticam, com regularidade, no seu dia a dia, onde ela existe, lado a lado, com a língua materna, o nosso crioulo. É um dos temas que, por alguma coincidência ou por haver, de facto, uma preocupação maior sua à volta, que ultrapassa as fronteiras dos nossos Estados, um dos assuntos, eu dizia, de que tenho falado com alguma frequência, quer em Cabo Verde quer no exterior. Tal como aconteceu, o ano passado, no Palácio da Bolsa, aqui no Porto, na companhia do Presidente Marcelo Rebelo de Sousa, pelos 130 anos de Jornal de Notícias, a propósito da língua enquanto activo económico.
Mas a língua é a língua, e no caso da nossa língua portuguesa, por mais falada, moldada, afectada, pronunciada e discutida, ela nunca se extingue, antes pelo contrário, é no seu enrolar, na sua extensão, no seu ritmo, nas suas sílabas e orações que viajamos e labutamos, no nosso dia a dia; é nela e com ela que existimos enquanto seres comunicadores, que ocupamos um espaço no mundo e nos identificamos no meio de outros povos e outras culturas. É o ancoradouro que nos impede de naufragar. E daqui poderíamos extrapolar para vários exemplos de relacionamento dos povos com as suas línguas maternas, algumas criadas e evoluídas nos seus territórios de origem, outras trazidas de paragens longínquas e impostas ou adoptadas por outros povos; umas imperiais, outras minoritárias, umas práticas e herméticas, outras moldáveis na sua plasticidade, mas todas contendo paixões, dor, sentimentos, sonhos e utopias.
Nos nossos países africanos, onde a língua portuguesa vem coexistindo ao lado das nossas línguas nacionais, ela vem funcionando como janela para outros mundos; mundos esses que, por sua vez, nos vão absorvendo e entrando em nós, acabando por ser parte de nós, do nosso tecido intelectual. Os povos coloniais têm histórias muito parecidas, como me parece ser natural. No meu caso, recordo-me, em menino, de me postar em fila à entrada de uma modesta barbearia para ouvir o relato de um Benfica-Real Madrid, final de uma Taça dos Campeões Europeus, nos anos sessenta.
E foi pelo futebol, poderei dizer, que também fui entrando pela língua portuguesa, por exemplo através do jornal A Bola, que me habituei a ler, com meses de atraso, por vezes, com cerca de nove-dez anos de idade, devorando e compilando as crónicas de Vítor Santos, Alfredo Farinha e Homero Serpa. Estes também eram os tempos do estudante quinto anista, que se dizia bem falante, apreciado e precedido pela sua formação académica; o tempo também dos professores cultos, eruditos e exigentes, alguns deles poetas e prosadores, que iriam, inclusive, marcar as letras do meu país, como Baltasar Lopes, António Aurélio Gonçalves, Arnaldo França, Corsino Fortes, assim como das revistas literárias que fizeram história entre nós. O tempo, igualmente, dos primeiros romances e dos primeiros poemas, dos clássicos portugueses e brasileiros, Eça, Guerra Junqueiro, Camilo, Garret, Graciliano Ramos, Guimarães Rosa ou Erico Veríssimo.
Mas também outros que foram chegando, através desta mesma língua, pela mão daquele grupo de empenhados decifradores de estados de alma, que são os tradutores, quais personagens saramaguianas, que nos fizeram chegar Steinbeck, Servidão Humana, Tolstoi, Os irmãos Karmázov, ou, já mais tarde, Artur Rimbaud, T. S. Elliot, André Breton, Os cantos de Maldoror, Strindberg, Elias Canetti…
É, também, através da língua e das literaturas que esta produz – na sua poética, prosa de ficção ou teatro – que acabamos por afirmar a nossa identidade enquanto povos em busca do seu próprio destino; povos que aspiraram à independência cultural e, mais tarde, política, fazendo da língua veículo de combate e de aspiração a um novo tipo de sociedade, interpretada na pena dos escritores e poetas, e que devemos reconhecer como verdadeiros heróis nacionais. E aqui a língua é a portuguesa, naturalmente, esse legado histórico-cultural com mais de 800 anos, capaz de ultrapassar utopias, barreiras políticas, guerras, em que expressamos toda a nossa condição humana, as nossas ansiedades e o nosso júbilo, compreendemos o passado e planeamos o futuro. Uma língua que, como sabemos, a partir do século XII veio descendo dessas terras da Galiza, a norte aqui da Póvoa, autonomizando-se da sua génese galaico-portuguesa, até se tornar no veículo de comunicação desses primeiros portugueses.
E dessa viagem para além do território luso chegou até nós, moldando-nos e fazendo de nós inquilinos desta casa multissecular, com uma riquíssima literatura com sabor a mar, a desertos, florestas, ilhas e planaltos, numa variedade de sotaques, falares e léxico enriquecedores. Uma casa de moradores ilustres, como Camões, Machado de Assis, Eça de Queirós, Cabral de Melo Neto, Mia Couto, Luandino Vieira, Francisco José Tenreiro, Baltasar Lopes da Silva, entre outros. Esta é a nossa geografia de sentimentos e emoções, da forma como ouvimos, interpretamos e expressamos os rumores que enformam o nosso lugar no mundo, que serviu e vem servindo de inspiração para os jovens escritores, alguns aqui presentes. E como se pode ver, é, sobretudo, uma língua oceânica numa viagem permanente, misturando povos e vários sabores culturais; uma língua banhada e feita de um renovado mare nostrum, já ao nosso jeito, na corrente das nossas ilhas todas, as que estão e as que poderão chegar, o mar sentado num trono de algas, como David, Rei de Israel, ou como se fosse um deus inatingível num olimpo imenso, infinito, não abalado pelos ventos, nem molhado pelas chuvas, nem sobre ele caindo a neve, a saborear frutos de sua gestão magnífica, de sua invejável odisseia de noites e crepúsculos, âncoras e velas, uma intrigante mazurka de ondas, faróis, grumetes, escrivães e poemas de sal esculpidos em pedras longínquas, aladas fantasias em malandro sobrevoo, rochedos e banhistas, sol e areia, teimosas rebentações e cabeçudos fantasmas; uma maré orgânica com requebros e musicalidade própria. Uma língua que já foi imperial, mas que hoje é cada vez mais um instrumento essencial de um lar de Estados livres, com democracia, fraternidade e fruição de direitos fundamentais.
Falar da língua portuguesa e de literatura num evento como este tem a sua carga simbólica; aqui lançam-se livros, concedem-se autógrafos, assiste-se a mesas temáticas, tem-se acesso ao que pensam os escritores, editores, jornalistas, críticos, num modelo que os coloca frente a frente com o público interessado e seus pares. Já todos ouvimos, também, debates sobre o valor económico da língua portuguesa, ouvimos falar de números e estudos que nos dão dados estatísticos. E ficamos a saber que é a quinta ou sexta mais falada no hemisfério ocidental e de que está em franca expansão em várias regiões do globo, e que é uma língua de futuro. É claro que tudo isso é positivo, agradável de ouvir. Mas, que valor ou importância tem isso para o escritor quando compõe um poema, escreve um conto, uma peça de teatro ou um romance. Provavelmente pouca nenhuma. Quero dizer com isto que, o poeta ou o romancista, sendo ele o criador das estradas do nosso imaginário, continuaria a escrever, à margem destes fenómenos, sem que as dinâmicas da língua em que escreve lhe desviem minimamente o sentido e a atenção. Nem mesmo o facto de nos próximos 40 anos estarem previstos mais 100 milhões de falantes, e alguns potenciais leitores mais, na sua língua. Que dirá ele do facto de esta língua em que escreve ter um lugar muito especial no mundo, sobretudo no Atlântico Sul, e que muitos já designam por um ‘lago’ da língua portuguesa, e que tende a evoluir, com as boas perspectivas do crescimento demográfico deste espaço de excelência do mundo lusófono, num mar marginado pelos PALOP e o Brasil.
Na verdade, entre esses milhões que falam a língua, são poucos os que com ela criam poesia ou prosa, que cruzam o Índico e o Atlântico – e quero lembrar aqui, também, essa característica muito especial que é a de ser uma língua europeia, cuja evolução se faz, sobretudo, fora da Europa – atravessam o mar, dizia eu, para participar em eventos desta natureza, feiras do livro, para dar autógrafos. Falo isto porque me parece que apesar dos números e das estatísticas, é numa ilha que o escritor vive; e continuará a viver na sua ilha, nesse seu território pessoal onde tudo acontece, de dimensões de profundidade enormes, durante toda a sua existência. Então, visualizamos o escritor praticando a sua arte, algumas vezes embriagado pelas suas obsessões, percepções e reflexões, embebido de um espírito quase messiânico, com uma ideia quiçá desmesurada da utilidade daquilo que irá produzir. É claro, sem esquecer os momentos em que é assaltado por um sentimento de frustração que se confronta, de modo criativo, com a eternidade dos instantes da euforia, momentos em que é possível acreditar, como Balzac, «Moi j’aurai porté une société entière dans ma tête»
E entre a vertigem e a frustração, o delírio e a paisagem, parece estar a chave do paraíso, mesmo que não se assuma que Un coup de dés jamais n’abolira le hasard( Mallarmé).
Essa capacidade única do escritor de falar com quem ainda não nasceu, e de continuar a falar mesmo depois de morto, para alguns desses novos milhões de falantes e leitores da língua, esperados dentro de algumas décadas. Ao contrário dos cemitérios, as bibliotecas estão bem vivas, onde podemos continuar a dialogar com Virgílio, Dante, Cervantes, Bernardo Soares, séculos depois de terem morrido. E é através da língua que, da sua ilha, como eu disse, o escritor, aqueles que escrevem livros, constroem universos e nos convidam a visitá-los, ajudando a preencher, assim, os silêncios que nos habitam. É tal a força do Verbo, diríamos nós, aquele que já estava no princípio. Naturalmente que estou a falar dos escritores que ficam connosco durante toda a vida, aos quais voltamos sempre e cujos livros nunca lemos de uma só vez, ainda que não sejamos, ao jeito de Desnos, «cavalos trituradores das letras». E também do silêncio que fica depois das suas palavras, sempre que estas são cirúrgica e perfeitamente encaixadas, le mot juste, como diriam os franceses.
E são alguns desses universos existentes que ficamos a conhecer, através das letras da nossa língua comum: uns sul-americanos, outros europeus, outros africanos, e mesmo asiáticos. Autores que nas suas obras captam o espírito que enforma a vida de determinada comunidade, num determinado tempo, transmitindo-a depois a um público mais vasto. Por isso, é natural que o rio Carinhanha, do Grande Sertão Veredas, entre no São Francisco e venha desaguar a Luanda, e daqui atravesse o continente até Moçambique e tenha regressado a terras de Angola, nos últimos anos, ligando Guimarães Rosa a Luandino Vieira, a Mia Couto e a Ondjaki. Mas também o Menino do Engenho, de José Lins do Rego, o irmão mais velho de Chiquinho, de Baltasar Lopes da Silva, ou os saveiros de Salvador da Bahia, de Jorge Amado, descarregando peixe no Mar da Laginha, de Germano Almeida. Sem esquecer, naturalmente, as ‘bengaladas’ literárias, por entre monóculos desalinhados, de Machado de Assis e Eça de Queiroz.
Mas podemos também verificar como outras propostas literárias de escritores de gerações mais novas, dos nossos países, vêm ocupando o seu espaço, recebendo o testemunho, e revelando talento e dotes de escritor de contos, romances e poesia, que nos intrigam e surpreendem, agradavelmente. Muitos vencem prémios literários e passam de imediato a ser seguidos por aqueles já consagrados, pelos mestres, que estarão a pensar o que deles terá extraído o novo vate. De tanto navegarmos nesta língua, é raro aquele que pode afirmar que fala com a própria voz. Nunca poderemos dizer aquilo que é nosso mesmo e aquilo que resulta como uma ‘cria’ de um dos gigantes que nos habituamos a admirar.
Também estes novos descobrem o poder secreto que lhes permite enfeitiçar-nos, a forma admirável como utilizam a língua, inebriando-nos. E assim se renovam as nossas letras e se evocam aqueles momentos de extrema ternura vividos, ao escutar as primeiras leituras da boca de um avô, avó, uma tia ou dos nossos pais, palavras reconfortantes, mágicas, talvez sentado num poial ou numa varanda. Isto tudo antes de nos tornarmos rapazes e raparigas genuinamente rebeldes, sonhadores, alguns mesmo anarquistas e convictos da força das palavras e das extraordinárias capacidades da literatura para transformar o mundo. Quantos de nós não viveu inteiramente na imaginação, talvez guiados pelas estrelas ou por uma corrente (de escrita) nocturna – esse sedutor tinteiro das nossas noutes – visto que – diz-se – , ao contrário da ciência que se revela durante o dia, a poesia brota pela noite; é quando se ilumina o nosso imaginário, naquela imobilidade transcendente, que sonha mais do que pensa o nosso universo.
Foi ela, a infalível imaginação (aquela mesmo que, no Manifesto de 24, foi erigida em estandarte primeiro: «querida imaginação, o que eu amo em ti acima de tudo é que não perdoas») que nos levou a descobrir mundos vivos – embora ocultos – e a cruzar fronteiras, inspirados por Homero, Borges, Goethe, Shakespeare, Whitman, Mallarmé, Pound, O’Neil, Manoel de Barros, Breton, Cesariny, e a querer quebrar a paralisia imposta por modelos esgotados, a procurar os esconderijos do destino e do amor.
O anúncio da chegada de um novo poeta ou romancista deve ser sempre uma promessa de júbilo, esplendor e de revelação de novos campos tangíveis. A verdade é que o ritmo do tempo é quase incompreensível, e só a literatura tem o poder de desacelerar essa rotina infernal, de chamar e acariciar o tempo, colocando-lhe o peso de um livro em cima. Os novos escritores não deverão querer mudar o mundo como nós, mas transmitir aos seus contemporâneos uma nova perspectiva das cousas e do mundo. Medindo, talvez, a relativa proximidade entre a vida e a morte, essa dupla de gémeos primordiais. Inapelavelmente, vida e morte. «Que a morte será simples como ir/Do interior da casa para a rua…» constata com serenidade Sophia de Mello Breyner Anderson – Sinto os mortos no frio das violetas) . E a escutarmos, sem qualquer surpresa: «bienvenido al hogar; nunca fuiste extranjero»
[Nos nossos países, nas nossas sociedades, ainda vamos conseguindo manter aquele compasso do tempo manso, domesticado, a conversa fluida, livre e espontânea, com a palavra sobrepondo-se à imagem e ao silêncio. Temos rios para descrever, montanhas e céu para revelar, ilhas para calcorrear, em páginas futuras. Tudo terá de ir parar à literatura, como é natural, de uma forma ou de outra: os risos das nossas crianças, saturadas de cor e intensidade, a eloquência dos nossos velhos, todos ajudando a criar os nossos próprios mitos, descobrindo-nos a nós próprios, tornando-nos em qualquer coisa. Enraizados nos nossos solos, com as nossas palavras – palavras desta nossa língua – cativamos homens e mulheres por toda a parte, transmitindo os sortilégios que nos rodeiam.]
Mas esta língua que falamos carrega consigo outras ambições, novas vontades. De tal forma que nos levou a unir-nos em forma de uma Comunidade, a partilhar mais do que uma simples existência de facto – a reivindicar um espaço próprio para nós no mundo. Um espaço onde os seus habitantes podem e devem circular livremente, cruzar fronteiras, ambicionar ir mais além, lá aonde esta língua comum os puder levar. A mobilidade dos povos é o assunto de momento, no mundo em que vivemos. É uma necessidade premente e uma urgência que enraíza na própria condição humana; faz viver, frutifica, impulsiona e cria ideias. E para a presidência desta comunidade, da CPLP, que Cabo Verde assumiu, em Julho do ano passado, para o biénio 2018-2020, o principal desiderato é estimular, desenvolver e dar execução a esta mobilidade. É a nossa grande ambição.
Do ponto de vista dos números, qualquer economista encontrará razões de sobra para defender a tese da mobilidade no quadro da CPLP, pois que daria ainda maior escala aos nossos países e alargaria consideravelmente os nossos mercados, com aproveitamento de sinergias e complementaridade entre as economias nacionais, factores decisivos para a atracção de investimentos e consequente criação de emprego. São razões fortes e válidas com certeza. Mas, neste espaço emblemático que são estas Correntes d’Escritas, cujo caudal vem sendo alimentado e enriquecido, há duas décadas, por homens e mulheres de letras dos países que formam a nossa comunidade, devo aqui destacar motivações ainda mais profundas, mais sentidas e verdadeiras: a nossa história comum que gerou fortes traços culturais comuns, língua, religião, costume e valores, história comum que fez cruzar sangues, forjou amizades e cumplicidades. São estes factores que geram a nossa comunidade de afectos.
Uma comunidade de pessoas assenta em negócios, em números, mercadorias, comércio, investimentos e emprego, sem qualquer reticência, mas ela é entrelaçada por afectos, por esse sentimento especial de comunhão, de nos sentirmos por momento felizes com o sucesso do outro, e de a tristeza nos assaltar com o desaire ou a tragédia do outro. Uma comunidade de pessoas é aquela onde o espaço é partilhado, os muros são abatidos e os visitantes, quando não são residentes, não têm necessidade de uma autorização especial para franquear a porta.

Existem ainda receios muitos a esse respeito? Sim, claro que existem. Nesse mundo um pouco conturbado, é normal que nos sintamos mais seguros em nossa própria casa, com trancas à porta. Espreitamos antes pelas frinchas, avaliando com vagar e muita desconfiança o visitante que bate à porta. A nossa casa é o nosso refúgio, a presença de terceiros intranquiliza e a primeira anomalia é logo imputada ao último dos moradores, o nosso visitante. É assim a vida, as pessoas comuns são gente à procura de sossego, de segurança, do emprego e do futuro para os seus filhos. Tudo o que é estranho perturba, desassossega, compreensivelmente.

Não podemos ser intolerantes em matérias dessa natureza, devemos antes fazer um esforço de compreensão, para podermos agir com racionalidade e ponderação numa área tão sensível. Às vezes até convém que primeiro nos olhemos ao espelho, antes de agir em relação aos outros. Temos que vencer essas barreiras, sem fazer uso das marretas, antes criando pontes pelas quais certos segmentos mais ativos das nossas sociedades possam comunicar-se, cruzando espaços, histórias, vidas, experiências e saberes.
Mas eu regresso a este simbólico encontro, que é, a todos os níveis, um exemplo dessa mobilidade, bastando para isso olhar à nossa volta, para dizer que o mundo da cultura é a ponte principal para iniciarmos esta caminhada. Pretendemos estender pontes entre os nossos países para os homens da cultura, criadores, artistas, promotores e agentes, mas também para os serviços e produtos culturais. A livre circulação entre os nossos países da CPLP dos homens da cultura e dos bens culturais é o caminho que vamos trilhar, aqui com a vantagem de seguramente ser objeto de menor resistência, pois que nesta área, ao longo dos tempos, por motivos óbvios, a comunicação tem sido mais intensa, o fluxo mais regular e a circulação ganhou já alguma escala.

E é neste segmento de enormes e reconhecidas potencialidades – da cultura, das artes e outros sectores criativos de grandes potencialidades – que as nossas sociedades se expressam e se manifestam mais vivamente, através da pintura, artesanato, escultura, poesia, dança, teatro, cinema, arquitectura, moda e fotografia, entre outras realidades. Que estas possam formar um baluarte, um núcleo sólido para se imporem contra a indiferença e a cegueira dos cépticos. Por outro lado, construir pontes culturais que permitam maior fluidez de circulação, comunicação e convivência e que facilitem a realização de eventos plurinacionais, é sabido, implica também alguma convergência técnica e normativa em vários sectores, tais como os licenciamentos, os sistemas de protecção dos direitos autorais, facilidades aduaneiras, benefícios fiscais e convenções para evitar a dupla tributação.

E aqui, nesta 20ª edição das Correntes, será exagero afirmar que já sentimos todos uns pingos desse banho de mobilidade? Estamos lado a lado com escritores, editores, livreiros, jornalistas, críticos, tradutores, oriundos de vários países. E durante os próximos dias falaremos de livros, naturalmente. Mas também iremos falar de arte, cinema, música, dança, artesanato, etc, noutros encontros a decorrer nos nossos países, nas nossas cidades; construir e desenvolver um mercado cultural da CPLP enquanto poderoso instrumento para a substanciação da nossa comunidade, dando-lhe dimensão e profundidade, com uma contribuição significativa para a consolidação das relações de fraternidade entre os nossos países e povos. Numa CPLP com essas características os cidadãos se reveem com certeza, porque reflecte as suas verdadeiras preocupações, alargando os seus espaços, os seus horizontes e a sua capacidade de afirmação e realização pessoal e profissional.

Não foi em vão que escolhemos A Cultura . As Pessoas. Os Oceanos como lema de uma presidência que pretende dar o protagonismo àqueles que de facto constituem esta comunidade: os nossos povos. E neste âmbito, para o biénio 2018-2020, as cidades da Praia e da Cidade Velha serão designadas como Capitais da Cultura da CPLP, com a realização da Feira do Livro de Autores da CPLP, de espetáculos de música com artistas dos Estados-Membros da CPLP; de uma Conferência sobre a criação de um Mercado Comum das Artes, da Cultura e das Indústrias Criativas. Eventos esse que serão realizados por ocasião da X Reunião de Ministros da Cultura, a ter lugar na Praia, em abril deste ano.
A Cidadania e a Mobilidade serão abordadas num Ciclo de Conferências, a que se segue uma Semana Cultural da CPLP, por ocasião da celebração do Dia da Língua e da Cultura da CPLP, com Festival de Cinema da CPLP; Exposição de Arte da CPLP; Colóquio sobre a Língua Portuguesa, para além da IV Conferência Internacional sobre o Futuro da Língua Portuguesa no Sistema Mundial, no final deste ano.
Mas também apresentamos uma Agenda, com ações e medidas, projetadas no tempo. Assim, esperamos que até o final deste trimestre seja apresentado um Estudo do quadro comparativo das leis, regulamentos e acordos existentes nos nossos Estados em matéria de mobilidade, exatamente para conhecermos em detalhe de onde estamos a partir e que caminho efetivo já foi percorrido, identificando os constrangimentos.
Depois, pretendemos apresentar até fins de Julho do corrente ano uma primeira proposta do que designámos de Modelo de Integração Comunitária, como sistema que abrange segmentos de categorias de pessoas e de matérias que dão substância à mobilidade, expostas de forma vertical e hierarquizada em níveis, e uma linha de tempo para a sua incorporação pelos Estados membros, permitindo a cada um processo progressivo de adesão com escolhas diferenciadas de níveis de segmentos, acoplados ao tempo necessário para a sua efectivação.
Esperamos que este modelo possa ser formalmente aprovado até ao primeiro trimestre do próximo ano, permitindo aos Estados, depois, manifestar a sua adesão aos diferentes níveis, com um calendário compatível com as especificidades de cada um.
E esperamos que nessa ocasião (primeiro trimestre de 2020) todos os Estados, sem excepção, adiram ao menos aos primeiros níveis de integração comunitária.
Estamos cientes das dificuldades técnicas que muitas vezes se levantam na concretização das deliberações políticas e, por isso, com a colaboração de todos, também vamos dedicar uma especial atenção à construção de critérios práticos, eficientes e seguros que permitam ultrapassar tais dificuldades.
O meu país, Cabo Verde, está em condições de marchar muito rapidamente nesta matéria.

Excelências,
Comecei esta minha, já longa, intervenção pela língua e pelas letras e assim irei encerrá-la, evocando aqui dois nomes que contribuíram significativamente para o engrandecimento das nossas literaturas, a portuguesa e a cabo-verdiana, em particular, e da língua portuguesa, num todo. Refiro-me a Sofia de Mello Breyner e Henrique Teixeira de Sousa, que este ano comemoram o centenário do seu nascimento. Duas figuras importantes cujo olhar soube captar as centelhas do seu tempo, a luminosidade dos dias e as contradições de um mundo multiforme.
Resta-me agradecer à organização, na pessoa da Dra Manuela Ribeiro, o amável convite que me dirigiu para estar presente nesta edição simbólica das Correntes d’Escritas, e fazer votos para que estas continuem a transportar as palavras, muito calor (que por aqui está a fazer falta) e a promover o cruzamento de ideias, sorrisos e muita amizade.
Muito obrigado!