Discurso do Presidente da República na Sessão de abertura do Encontro Internacional “Os cuidados Paliativos em Cabo Verde” – Dignidade humana até ao fim da vida

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Ilha do Fogo, 04 de Outubro de 2019

Excelências,

Ilustres Convidados,

Minhas senhoras e meus Senhores

As minhas primeiras palavras são de profundo reconhecimento aos mentores desta iniciativa, pois diz respeito a uma problemática de indiscutível importância que a todos interessa e a que nenhum de nós escapa.

A morte é inerente à vida. «A finitude da vida e a vulnerabilidade do corpo e da mente são signos da nossa humanidade, o destino comum que iguala a todos. Representam, a um só tempo, mistério e desafio. Mistério, pela incapacidade humana de compreender em plenitude o processo da existência. Desafio, pela ambição permanente de domar a morte e prolongar a sobrevivência..

Através de políticas públicas temos de cuidar da vida e da saúde das pessoas, de desenvolver todos os esforços para que as mortes evitáveis o sejam e para que as doenças possam ser tratadas ou curadas, para que o maior número possível de pessoas tenha acesso aos cuidados de saúde.

Igualmente temos de desenvolver programas de prevenção das diferentes mazelas, de acordo com as idades e circunstâncias, adoptando procedimentos de imunização ou de educação para a saúde ou procurando controlar as condicionantes das doenças.

Todos reconhecemos os grandes avanços conseguidos nessas áreas em Cabo Verde, o que nos orgulha, mas temos consciência do imenso que falta fazer.

É exactamente porque existe a consciência das tarefas hercúleas a cumprir nos domínios do tratamento e da prevenção das doenças, com o objectivo de cuidar da vida e da saúde das pessoas, que a coragem de introduzir na ordem do dia a problemática dos Cuidados Paliativos adquire uma importância extraordinária e revela uma apuradíssima sensibilidade para um importante e esquecido, mas inseparável componente da vida, que é a morte.

Diria, singelamente, o poeta: Eu e tu, simplesmente vida e morte. Inapelavelmente, vida e morte. E a escutarmos, sem qualquer surpresa: «bienvenido al hogar; nunca fuiste extranjero». Vida e morte, absurdo ou mistério, o mundo? A equação de Deus.

Ilustres Convidados,

Minhas senhoras e meus Senhores

Saúdo de forma muito efusiva esta iniciativa pioneira que congrega simultaneamente a intervenção num terreno ainda pouco conhecido de forma sistemática entre nós e um debate de âmbito nacional, com contribuições de profissionais de outras paragens.

Os organizadores não se propõem apenas celebrar o importante e inédito feito que é a abertura do Centro de Cuidados Paliativos Nossa Senhora de Encarnação, mais uma generosa contribuição do Padre Ottavio Fasano, mas, também, solidariamente dizem: estamos fraqueando um caminho e queremos partilhar com o país as potencialidades desse processo.

Profissionais da saúde, decisores políticos, universidades, gestores das principais estruturas de saúde, são convidados a reflectir sobre a necessidade de se estruturar, com dignidade, competência e humanismo, os cuidados a serem prestados a pessoas que padecem de doenças que não têm cura e que caminham para a morte, bem como aos seus familiares.

Durante três dias pretende-se discorrer sobre aspectos centrais dessa problemática que abarca contribuições de saberes diferentes, como os antropológicos, médicos, psicológicos, epidemiológicos, das ciências sociais e os de ordem espiritual e que devem centrar-se na pessoa e seus familiares e não na doença.

Ilustres Convidados,

Minhas senhoras e meus Senhores

Não obstante a sua presença constante ao longo da vida, enquanto possibilidade ou algo muito concreto, as relações com a morte sempre foram muito complexas. Provavelmente porque o homem tem muita dificuldade em lidar com a sua finitude.

O desenvolvimento da ciência e da tecnologia tem vindo expandir o limite da vida. Até entre nós, com todos os desafios e dificuldades que temos, alargamos a nossa esperança média de vida para os oitenta anos, no caso das mulheres. Esta permanente busca do homem pela imortalidade, diria, pela indestrutibilidade da energia, a ambição de domar a morte e prolongar a vida não consegue vencer o inevitável: a morte.

Porém, com este desejo de nos tornarmos uma espécie de deuses, criamos um novo medo. Hoje tememos não só a doença e a morte, mas também o prolongamento da vida em agonia, a dor e o sofrimento na espera da morte quando toda ciência e tecnologia fracassaram na cura tão procurada.

Ainda há dias, fui confrontado com esta situação ao visitar uma casa de doentes idosos no estrangeiro. Vê-los quase completamente destituídos da sua liberdade, porque fisicamente se encontram totalmente dependentes de terceiros, sentir que são pessoas cuja sobrevivência foi prolongada através da ciência, mas que se encontram numa situação de total incapacidade física… colocou-me a questão sobre até onde a utilização da ciência e a medicamentalização da vida pode transformar a morte num processo doloroso, especialmente doloroso para a mente!

Minhas senhoras e meus Senhores

A Medicina, naturalmente, lida com a morte, uma vez que uma das suas principais funções é evitá-la, ou pelo menos retardá-la. Ela procura igualmente aliviar a dor e o sofrimento. Porém, perante situações-limite para as quais não tem respostas adequadas as posições têm variado. Não vou aqui abordar estas questões, técnicas e filosóficas, tanto mais que elas farão parte inerente dos vossos trabalhos, mas gostaria de vos lembrar que a questão dos cuidados paliativos no nosso país tem um relevo muito grande.

Na verdade, quase diariamente ouvimos falar de pessoas que, estando com diagnósticos muito desfavoráveis, com doenças graves, especialmente do foro oncológico, não obtêm a avaliação positiva da junta médica para serem evacuados para o exterior . E não o são, porque o parecer médico autorizado é de que qualquer tratamento, intervenção médica, não vai curar a doença, apenas atrasar dolorosamente a morte.

Estas decisões de não evacuação para estruturas médicas de países com os quais Cabo Verde tem protocolos de cooperação médica, significam que estes doentes terão de enfrentar o caminho para a sua morte anunciada, aqui , nas nossas estruturas hospitalares e com os recursos existentes no país.

Há aqui um campo em que se torna necessário definir políticas públicas capazes de, face ao nosso ordenamento jurídico, tornar o processo de morrer mais humano, consequentemente, mais digno.

Ilustres Convidados,

Minhas senhoras e meus Senhores

A dignidade da pessoa humana é hoje um dos valores consensuais da civilização que partilhamos, estando também inscrita, lapidarmente, em muitas constituições democráticas, nos documentos internacionais e tem sido muito citada nas decisões judiciais.

A CRCV declara a dignidade da pessoa humana como um valor primacial garantido por Cabo Verde, verdadeiropilar que sustenta e justifica toda a construção dos direitos fundamentais. Somos um estado de direito porque ele se funda na afirmação da eminente dignidade da pesoa humana.

Dignidade da pessoa humana significa, outrossim, que cada pessoa é um fim em si mesma. A vida de qualquer ser humano tem um valor intrínseco, objectivo e próprio, não dependendo de qualquer factor, de outra pessoa ou da sociedade onde está inserido. A dignidade da pessoa humana significa, também, que esta não pode ser instrumentalizada, isto é, ninguém existe para servir outrem ou para prosseguir quaisquer metas colectivas. Daí a dignidade humana ser indissociável da liberdade e da responsabilização de cada pessoa pelos seus próprios valores.

A dignidade da pessoa humana está presente, tem de estar presente, também, no fim da vida.

Os Cuidados Paliativos surgem como resposta a essa realidade, procurando recolocar a morte no seu padrão de normalidade, parte integrante da própria vida e que, como tal, deve ser tratada com a dignidade de que o ser humano é merecedor.

Os Cuidados Paliativos assumem-se como uma ponte entre a vida e a morte, envolvendo não só a pessoa como todos os que lhe são próximos, num processo doloroso mas que deve ser vivido com toda a dignidade.

A proposta dos Cuidados Paliativos consiste em minorar o máximo possível a dor e demais sintomas dos doentes e, simultaneamente possibilitar a maior autonomia e independência dos mesmos. O ideal é que o indivíduo enfermo tenha controlo do processo de morte, realizando escolhas a partir das informações sobre as técnicas médicas e espirituais que considerar adequadas. A palavra de ordem é a comunicação franca entre profissionais de saúde e pacientes: o tratamento deve ser discutido entre todos os envolvidos. O ideário dos Cuidados Paliativos valoriza a expressão dos desejos dos doentes e de seus familiares.

Assim, justifica-se o envolvimento dos profissionais e familiares nos cuidados. O último período de vida deve ser assistido por uma equipa interdisciplinar voltada à “totalidade bio-psico-social-espiritual” do doente e de seus familiares e oferecer uma oportunidade especial de crescimento individual para os cuidadores.

A partir da década de 1970, serviços de Cuidados Paliativos são implantados em diversos países, como Canadá, França, Argentina, Itália, Austrália, Brasil. O modelo é amplamente difundido e debatido,tanto no meio médico como na comunicação social e emerge uma nova disciplina, a Medicina Paliativa, especialidade actualmente reconhecida em alguns países.

Para a OMS, “Cuidados Paliativos” são uma abordagem que promove a qualidade de vida de pacientes e seus familiares, que enfrentam doenças que ameaçam a continuidade da vida, por meio da prevenção e do alívio do sofrimento. Requerem identificação precoce, avaliação e tratamento da dor e outros problemas de natureza física, psicossocial e espiritual.

O cuidado paliativo baseia-se em princípios dos quais destacamos: a necessidade de proporcionar o alívio da dor e do sofrimento, afirmar a vida e considerar a morte um processo natural, não adiar ou apressar a morte, oferecer um sistema de apoio aos familiares na doença do paciente e no luto.

A OMS preconiza uma evolução dos Cuidados Paliativos do nível considerado de Provisão isolada de Cuidados Paliativos à Integração avançada, passando por níveis intermédios.

Disponibilizar Cuidados Paliativos significa, como já o dissemos, ´ respeitar e garantir a dignidade humana- valor fundamental- até ao fim da vida. Isto é, assumir integralmente a essencialidade dos direitos humanos.A dignidade é um valor absoluto e por isso tem de estar presente em todas as circunstâncias da vida de todos.

Garanti-la numa fase particularmente difícil, num período em que a própria vida tende para a finitude é assegurar o seu carácter verdadeiramente absoluto.

Minhas senhoras e meus Senhores

É muito importante a existência de serviços de prestação de Cuidados Paliativos ou pelo menos de estruturas que zelem para que determinados princípios básicos que enformam esses cuidados sejam apreendidos pelos diferentes agentes e concretizados.

É inegável que a assunção das premissas em que se baseiam os cuidados paliativos, pelos profissionais da saúde, é uma condição primordial para que os mesmos sejam efectivamente prestados.

Assim, mesmo quando existem condições para a criação de um serviço que se dedique a esses cuidados, esses princípios devem ser apreendidos por todos, pois, ao fim e ao cabo, é toda a instituição que deve guiar-se por esse diapasão.

Estou convencido de que este momento ímpar na história da saúde no nosso país, pelo inestimável valor em termos da valorização da dignidade humana, terá repercussões concretas nas nossas estruturas de saúde.

Desejo muito sinceramente que os debates e as conclusões deste Encontro sejam replicados nas diferentes estruturas de saúde e nas que com elas se relacionam, num processo de capitalização dos principais subsídios, contribuindo, assim, para que a pessoa doente seja na realidade encarada na sua totalidade.

Excelências,

Ilustres Convidados,

Minhas senhoras e meus Senhores

Renovo as felicitações aos organizadores deste grande e oportuno Encontro e dirijo uma palavra de muito apreço aos responsáveis do Hospice Faro, à direção do Hospital Regional Fogo-Brava e à Associação Solidariedade e Desenvolvimento, pelo grande serviço que prestam à ilha do Fogo e ao país com este importante fórum.

Na oportunidade, parece-me de toda a justiça destacar a consolidação da Associação Solidariedade e Desenvolvimento, que, a cada dia, se afirma como uma parceira incontornável para o desenvolvimento da ilha e de Cabo Verde, graças a uma dinâmica que articula, de modo particular, a ousadia, a criatividade e a responsabilidade.

É com muito prazer que agradeço e enalteço a filantropia do Padre Ottávio Fassano que, a todo o momento, nos surpreende com a sua capacidade de transformar, desespero, sonhos, anseios, utopias, em extraordinárias e palpáveis realidades.

Termino com Alberto Caeiro, o mais simple heterónimo de Pessoa: “E quando se vai morrer, lembrar-se de que o dia morre, E que o poente é belo e é bela a noite que fica. Assim é e assim seja- , O guardador de rebanhos

Declaro aberto o Encontro Nacional: A Cura Paliativa em Cabo Verde, Dignidade Humana até o fim da vida

Muito obrigado!