Mensagem de Sua Excia. Presidente da República, Dr. José Maria Neves, aos pares africanos pelo Dia de África

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O Património Natural e Cultural Africano, Alicerce de um Modelo de Paz Duradoura para o Continente e o Mundo

Excelências, Irmãs e Irmãos

Ao longo do ano, temos diversas oportunidades para refletir juntos, sobre o destino do nosso continente. A comemoração do Dia de África é, sem dúvida, uma dessas ocasiões privilegiadas.

Na qualidade de Champion da União Africana para a Preservação do Património Natural e Cultural, trago-vos uma proposta: a de colocarmos o nosso património — a nossa herança comum — no centro de um novo pacto continental de paz duradoura. Como dizia Félix Houphouët-Boigny: “A paz não é uma palavra, é um comportamento.” É chegado o tempo de agir, de forma conjunta, coordenada e visionária.

A África não é apenas o berço da humanidade. É a sua memória viva. É santuário de civilizações ancestrais, guardiã de saberes antigos e lugar de coexistência sagrada entre o ser humano e a natureza. As suas florestas sagradas, desertos míticos, danças cerimoniais, rituais de reconciliação e relatos orais antecedem qualquer fronteira política. São estas matrizes de sabedoria que nos unem e nos podem conduzir, hoje, a uma paz enraizada e transformadora.

Num momento em que o nosso continente enfrenta múltiplas crises — conflitos armados, tensões intercomunitárias, alterações climáticas, erosão cultural — importa recordar uma verdade essencial: a paz não se decreta, constrói-se.

E constrói-se não apenas nas cimeiras e nas instituições, mas também no quotidiano das comunidades, a partir daquilo que nos é mais íntimo e autêntico — o nosso património.

AOS CHEFES DE ESTADO E DE GOVERNO DA UNIÃO AFRICANA

Infelizmente, este património encontra-se sob grave ameaça. A África perde, anualmente, 4 milhões de hectares de floresta — o que representa 60% da desflorestação global (FAO, 2023). A bacia do Congo, segundo pulmão do planeta, poderá desaparecer até 2100. Os recursos hídricos e pesqueiros estão exauridos pela exploração predatória, com consequências devastadoras para as comunidades costeiras, privadas dos seus meios de subsistência e identidade.

Com efeito, a pesca industrial excessiva priva as comunidades pesqueiras dos seus meios de vida: 65% dos estoques pesqueiros na África Ocidental são explorados além do limiar sustentável por frotas estrangeiras, afetando cerca de 50 milhões de pessoas. Esta prática causa ainda a degradação de ecossistemas e a destruição de bancos de pastagens marinhas. A isto soma-se a poluição por plásticos: a África contribui com 17% dos resíduos marinhos globais, sufocando ecossistemas costeiros — como no Golfo da Guiné, onde 90% das aves marinhas ingerem plástico.

O custo humano é igualmente devastador: estima-se que 13% do PIB africano se perca anualmente devido a conflitos, com impacto desproporcional sobre mulheres e crianças. Segundo dados da UNESCO, 80% dos manuais escolares africanos fazem referência a guerras, mas quase nada dizem sobre as tradições de convivência pacífica entre os povos. E há ainda um outro património em risco: as línguas locais, que estão a desaparecer a um ritmo três vezes superior ao da própria biodiversidade.

Persiste também o património esquecido — edifícios, sítios históricos e memórias vivas condenadas ao abandono, por falta de recursos e de iniciativas de preservação. Cabo Verde, por exemplo, alberga locais de elevado valor simbólico, como a antiga hidrobase da Aéropostale, que outrora ligou continentes e cuja história permanece, ainda hoje, invisível e por contar.

Mas há igualmente motivos de esperança. A Grande Muralha Verde, que se estende do Senegal ao Djibuti, já permitiu restaurar 20 milhões de hectares e criar 350 mil empregos. O Parque Transfronteiriço do Limpopo serviu de catalisador para a reconciliação entre Moçambique, África do Sul e Zimbabwe. O regresso dos 26 tesouros reais de Abomey ao Benim demonstra que a vontade política, aliada à diplomacia e ao saber científico, pode reverter décadas de alienação patrimonial.

Estes casos demonstram que o património natural e cultural africano pode ser uma poderosa alavanca para o bem-estar, a reconciliação e a prosperidade. É tempo de avançarmos mais.

Proponho, por isso:

  • A adoção de uma Carta Africana do Património Natural e Cultural, com o compromisso de canalizar 1% dos orçamentos nacionais para a sua preservação, assegurando mecanismos de transparência e participação cidadã;
  • A criação de um Fundo Africano para os Oceanos, financiado por uma taxa simbólica sobre cargueiros que cruzam águas africanas;
  • O reforço do Fundo Africano do Património Mundial, com recursos provenientes de 0,5% das receitas do turismo e das indústrias extrativas.

Neste esforço de valorização do nosso património comum, a União Africana deve continuar a desempenhar um papel catalisador, promovendo sinergias entre Estados, investigadores, comunidades e agentes culturais. Através de plataformas como a Agenda 2063 e da Carta para o Renascimento Cultural de África, podemos reforçar o tecido institucional e jurídico necessário para transformar o património em pilar de governação, de coesão social e de identidade continental.

Urge, igualmente, modernizar os quadros legais e administrativos dos nossos Estados, dotando-os de mecanismos eficazes de proteção, classificação e valorização do património, bem como de instrumentos pedagógicos para integrá-lo nos currículos escolares, nos media públicos e nas estratégias nacionais de desenvolvimento sustentável.

Não podemos esquecer o papel essencial da diáspora africana, guardiã de memórias dispersas, mas resilientes, e ponte viva entre continentes. A sua contribuição para a valorização e internacionalização do património africano é inestimável. É tempo de acolher plenamente esta herança partilhada, convocando a diáspora para participar ativamente nos nossos projetos de preservação, restauro e transmissão intergeracional do saber.

Proponho ainda que avancemos para a criação de uma Rede Africana de Guardiões do Património, congregando vozes diversas — líderes tradicionais, cientistas, artistas, jovens inovadores e responsáveis locais — numa aliança continental pela memória viva de África. Só assim o nosso património deixará de ser apenas herança para se tornar semente.

Devemos também mobilizar a nossa maior riqueza: a juventude. Com 60% da população africana abaixo dos 25 anos, temos o dever de fazer da juventude e da inteligência artificial aliadas da preservação. Iniciativas como o Heritage AI no Quénia ou a EcoGuard na Nigéria mostram como a tecnologia pode proteger reservas naturais e identificar locais ameaçados com eficácia e precisão.

Como nos ensinou Wangari Maathai: “A paz na Terra depende da nossa capacidade de proteger o ambiente.” Eu diria: a paz em África depende da nossa coragem para proteger o que somos e o que temos.

Porque o desenvolvimento não se mede apenas em quilómetros de estradas ou megawatts, mas também no sorriso de uma criança que aprende a língua dos seus avós, no orgulho de uma artesã que resgata tinturas naturais, na serenidade de um pescador que volta a ver vida nas águas.

Os nossos antepassados mediam a riqueza pelas colheitas partilhadas, pelas crianças educadas, pelas histórias contadas sob as estrelas. Hoje, África pode liderar uma nova conceção de prosperidade: a do Índice de Felicidade Interna Bruta, alicerçada na harmonia entre povos, cultura e natureza.

Como diz o provérbio fulani: “Um ancião sentado vê mais longe do que um jovem de pé.”

Sentemo-nos, juntos, à sombra da árvore do nosso património comum. Ouçamos o murmúrio dos rios e das gerações que nos precederam.

E construamos, com coragem e ternura, uma África onde a paz não seja ausência de guerra, mas presença de beleza, dignidade e alegria partilhada.

Essa, Excelências, é a nossa verdadeira riqueza.

E é também o nosso legado.

Aceitem, caros Irmãs e Irmãos, os protestos da minha mais elevada estima e consideração (à mão).

José Maria Pereira Neves

Presidente da República de Cabo Verde

Champion da União Africana para a Preservação do Património Natural e Cultural