Discurso do Presidente da República na abertura da Conferência Internacional «Cabo Verde e o Atlântico: encruzilhada de pessoas, mercadorias e investimento de capital (1460-1610)»
Cidade Velha, 29 de Janeiro de 2019
Excelências,
Minhas senhoras e meus senhores,
Começo por dar as boas-vindas a todos, em especial aos convidados que vieram de fora para este dia de conferências, dedicadas ao papel da Cidade Velha e de Cabo Verde nas relações económicas e humanas, num período muito especial da nossa história e da história desta região específica e o seu impacto no mundo de então. De uma forma geral, tudo o que diz respeito à Ribeira Grande e aos primeiros tempos da nossa história, do povoamento da ilha de Santiago, o berço desta nossa nação, é muito caro a todos os cabo-verdianos.
Todos nos sentimos especialmente tocados, de uma maneira ou de outra, por esta nossa infância enquanto povo, este início do caldo de culturas, os primeiros passos pelas praias, as primeiras aventuras pelas nossas ribeiras, a descoberta do nosso chão futuro, este mistério nebuloso da nossa própria génese. E sempre que aqui vimos, em passeio ou para algum evento como este, é como se ao caminharmos por estas ruas da nossa memória ancestral, relêssemos a nossa biografia, ruas que nos recebem e nos observam, respirando, através dos nossos poros, pedra e corpo, corpo e tempo; parecem contar-nos tudo, com todos os pormenores, como uma avó paciente, sentada no poial da sua casa.
As árvores ao nosso redor, que crescem sem mover-se, que se agitam após a nossa passagem, fazem de nós figurantes na transparência dos séculos, porque sendo humanos, duramos pouco. E é sob a sombra baixa dessas mesmas árvores, longevas, avistadas de cima por estas montanhas, que se diluem os nomes de quem subiu e desceu a grande ribeira, a Rua da Banana e todas as outras; todos os que aqui chegaram e desembarcaram, por aqui passaram e em nós caminham; eles que são a nossa raiz, chegados do continente ou de diferentes europas, embalados pelo som das ondas, que se retiraram após a sua entrega.
Como disse há pouco, os nossos primeiros tempos são um mistério fascinante, como acontece com todos os povos, na sua gesta fundacional; uns tiveram cavaleiros altivos que vieram no Norte, à frente de poderosos exércitos, outros invasores provenientes de terras longínquas, outros conquistadores, outros ainda Funding Fathers construtores de uma nação, nós tivemos almas cativas e atormentadas, escravos e aventureiros, alguns degredados, arrastando suas penas pelas achadas e cutelos, e uma tarefa única que poucos tiveram, que foi fazer de uma terra pobre, inóspita e desconhecida, cercada pelo mar, um espaço de sobrevivência e de futuro, apaziguadas as almas, os ódios e a dor. Um lar. Todos aqui presentes terão alguma vez questionado, ao ver esta paisagem seca, árida, que assim é e foi desde o princípio dos tempos, como terá sido o dia a dia desses homens e mulheres, das crianças que geraram. Como terão estruturado as suas vidas face à dimensão das carências mais básicas.
Que génio inventivo e capacidade de realização e adaptação terão tido na edificação dessa primeira sociedade de homens livres e cativos, senhores e escravos, diluindo-se, lentamente, no pó, na terra e nos aromas. Mas o mais fascinante, se notarmos bem, é que em ilha tão carenciada das condições básicas para o povoamento e o estabelecimento de comunidades humanas, se vai desenhar alguns contornos do mundo novo, que se encontra do outro lado do Atlântico, como iremos, de certeza, ouvir falar aqui hoje.
Excelências,
Minhas senhoras e meus senhores,
Se há disciplina e assunto que fascina os cabo-verdianos e os investigadores é a História. Na verdade, não deve haver ninguém pelas ilhas que ignore, não sinta essa magia, essa curiosidade, que motiva os nossos historiadores, para o estudo da nossa ancestralidade, pelo nosso percurso como povo. E para além da sua diversidade paisagística, a história é uma das grandes riquezas de Cabo Verde e um dos motivos de orgulho que deve ser cada vez mais reforçado junto das camadas mais jovens.
Desde muito cedo, foi disciplina que atraiu homens e mulheres destas ilhas e não só, historiadores que quiseram registar para as gerações futuras compilações de informação depositada em arquivos eclesiásticos ou em instituições oficiais dos governos coloniais de então, notas de enorme importância sobre a vida nestas ilhas, e que representam um testemunho fundamental para a construção da nossa própria narrativa, enquanto nação.
Basta vermos como, nos últimos anos, se multiplicaram os livros sobre a história de Cabo Verde; investigadores, teses de mestrado e doutoramento, nacionais e estrangeiros, que encontram na nossa história um campo fértil e ainda virgem em diversas áreas, para trabalhos que aprofundem, cada vez mais, o conhecimento sobre as nossas ilhas. E a história aqui falada numa articulação com a arqueologia que, como se costuma dizer, vem comprovar, no terreno, o relato e as versões ditas oficiais, dos historiadores. Mas também com o estudo da economia, disciplina que muito terá a dizer, creio, sobre as relações mercantis que estarão na base da primeira actividade económica, a par da agricultura, e que vai ocupar os primeiros habitantes; na arquitectura dos primeiros edifícios e das igrejas. Mas isso, imagino, serão assuntos para o debate que irá seguir-se, ao longo do dia, pela voz dos especialistas convidados, através das suas aguardadas comunicações.
Gostaria também de salientar, aqui, a importância de colóquios, conferências e encontros como este. Cabo Verde, como sabemos, apenas há pouco tempo tem ensino superior, no seu programa educacional. Falo aqui da massa crítica que deve constituir o tecido académico de qualquer país, e do seu papel na formação e consolidação das ideias, na troca de experiências, na investigação contínua, indispensáveis ao processo de desenvolvimento. Ao contrário do que se pretende fazer crer, as ciências sociais e humanas são cada vez mais importantes no equilíbrio das sociedades, num ensino mais complementar e de acordo com valores de liberdade e cidadania.
Para um Estado em contínua formação com 43 anos de história, é fundamental esse caminho ser feito com bases sólidas no conhecimento da história, da Nação no seu trajecto de séculos. É importante conhecer o papel tido em determinados períodos e o que tal significou no contexto de uma história mais abrangente. Todos falamos de globalização, mas se a isso se acrescentar o papel destas ilhas nesse fenómeno de longa duração, a informação e o conhecimento serão, sem dúvida, outros, bem como o seu alcance e capacidade de projecção, num contexto mais vasto.
Comemoram-se este ano os 500 anos da primeira viagem de circum-navegação, que revolucionou o mundo científico de então, e que teve a ilha de Santiago na sua rota. Para além desta, outras viagens importantes, rumo ao Brasil, às Índias, também fizeram das nossas ilhas pontos importantes de escala, assim como as incursões aos chamados Rios da Guiné. A localização tem sido, como se vê, uma mais-valia por oposição à pobreza em recursos naturais. À semelhança da ilha senegalesa de Gorée, séculos depois, da nossa Ribeira Grande também partiram homens e mulheres para outras terras, para lá do oceano, cujas memórias residem no Negro Cabo Verde, do Nordeste Brasileiro, assim como no Papiamento, a língua-irmã das Antilhas Holandesas.
Partiram também plantas, culturas e animais, qual laboratório para esse continente ainda adormecido. Ainda falando em marcos na história, gostaria de relembrar aqui outro facto, também de grande importância, que são os 500 anos, celebrados no passado mês de Agosto, mais precisamente a 28 de Agosto, da elaboração da carta, pelo rei de Espanha, Carlos I, autorizando o transporte de escravos directamente de África para as Américas. Antes disso, refere a imprensa inglesa, que chamou a atenção para este facto perdido na memória do tempo, os escravos africanos eram transportados para Portugal e Espanha e só depois reenviados para as Caraíbas. Uma medida económica, lá está, mas que iria mudar radicalmente o curso da História, com uma factura terrível para a Humanidade.
Finalmente, nesta que é a nossa Ribeira Grande, Cidade Património da Humanidade, marcamos o nosso lugar na história Atlântica, no destino de homens e das mulheres, na poética dos espíritos, sob o sol e ao sabor das ondas.
Esta reflexão assume importância muito relevante, não apenas pelo conhecimento que proporciona sobre uma época crucial em termos económicos, culturais e humanos, mas, também, por ocorrer num contexto em que se procura reescrever a história, que afinal não acabou, compartimentando-a em lugar de a conceber como um processo continuo que diz respeito a toda a humanidade, com os seus cotejos de dor, dominação, resistência e libertação.
Esse conhecimento é essencial nos dias de hoje, em que, perigosamente, se procura afirmar, explicita ou implicitamente, supremacias que negam a essencialidade da humanidade.
A assunção da unidade diferenciada da humanidade pode ser uma poderosa ferramenta contra o propósito de imposição de valores que negam essa diversificada riqueza.
Queremos conhecer a nossa história, os espaços onde as nossas raízes culturais se encontram mergulhadas para delas retirarmos as energias que nos permitam continuar a cumprir a missão de ponte entre pessoas, povos, culturas e continentes.
Quero dar os parabéns à organização, à Kriol-Itá (a prova de que a nossa diáspora também pode ter um papel activo nestes estudos), à Universidade de Cabo Verde e à Câmara Municipal da Ribeira Grande de Santiago, por esta importante iniciativa, e desejar uma boa estada aos nossos convidados e um bom dia de trabalhos, que, estou certo, serão muito frutuosos.