De que falamos quando falamos de Arménio Vieira, há cerca de quatro décadas cognominado «irreverente e indomável espadachim da sorte e da morte, poeta de vento sem tempo»?
Dizer que Arménio Vieira completa 80 anos é pensar que as oito décadas de vida do poeta são apenas uma amostra dos muitos séculos que a sua mente, a sua memória e erudição abarcam. A estes espíritos enciclopédicos, que leram tudo o que a melhor literatura produziu, chamamos renascentistas. E Arménio Vieira é o renascentista da nossa era, no espaço de língua portuguesa, na medida em que o seu conhecimento do mundo das letras, das artes, das religiões e da filosofia, de tudo um pouco, transcende fronteiras espaciais e temporais.
Trata-se de um ‘connaisseur’ de biblioteca e de cineclubes, perfeito autodidata, daqueles que nunca precisaram de passar pelos bancos de uma universidade, para alcançarem a luz do conhecimento e um lugar de destaque na sua sociedade. Como os autores da época clássica, Arménio escolhe a poesia para dialogar e interpretar a vida e a História e fazer dela a sua matéria de trabalho, como um dedicado oleiro, moldando-a e reconstituindo-a.
É a palavra cinzelada, o termo certo, penetrando subtilezas e rumores, desconstruindo e refazendo amplitudes e dimensões. Arménio é dono de uma poesia sofisticada, amassada numa grande erudição, densa no discurso e sua organização, e cuja edificação é conduzida com critérios de gestão e de controlo permanente e magistral do ritmo frásico (diz ele que «as rimas são boas para a música»! ; «versos são simples linhas de prosa cortadas…»!), da sonoridade das palavras, da respiração e das emoções; ele acompanha de perto, de muito perto, exerce perfeita «monitoria» da intensidade das intenções da alma. Nada, nenhum passo, nenhuma progressão é feito sem medida, cirurgicamente fiscalizada, tratada e testada. Diria que ele exerce sempre, e continuamente, um tipo de «sobredeterminação final de um resultado comprovadamente poético, estético».
Ao poeta é-lhe pedido, vezes sem conta, que coloque o seu pensamento em prosa, que estas pontes subtis e originais interpretações, envolvendo História, Filosofia e Literatura, revoluções e episódios misteriosos, possam também estar ao alcance de outros leitores. Mas ele não escuta, não tem tempo. Continua a falar, no seu ritmo habitual imparável, solto nesse mar das ideias, que só ele consegue navegar. O pensamento vem-lhe numa correia de transmissão, que liga a biblioteca de Alexandria à biblioteca universal de Borges e acciona todos os escritos, poemas e prosa fantástica, estimulados por um simples cigarro e um trago de café preto.
Porque, deveras que uma coisa é ter pátria – verde, azul, que seja; e que coisa diferente é possuir o mundo, o mundo todo, ter mil pátrias, de todas as cores a caberem num só universo poético. Do jovem que viveu a irreverência própria da idade e que se aliou aos movimentos contestatários, que lhe valeriam a prisão; do mancebo que a tropa desenraizou e levou para territórios longínquos (Penamacor, Angola, Nambuangongo); do poeta imberbe que publicou versos já nos tempos do “Boletim” e de “Seló”; e deste poeta que hoje homenageamos, pelos seus oitenta anos, pode-se dizer que ganhou o direito a ser lembrado sempre, pois se não terá sido um dos pais-fundadores da pátria, é, sem dúvida, um dos seus mais altos dignitários.
Uma poética (apenas) aparentemente sem terra, mas não apátrida, sendo, a final, universal, como o próprio poeta. É o universalismo, a espinha cosmopolita que faz o homem Arménio Vieira, disfarçada na simplicidade aparente de uma conversa à volta de uma mesa de café: entre as peças de um tabuleiro de xadrez, de um campeonato de futebol, de um lado, ou as ansiedades de Fernando Pessoa e a vertigem de Dante Alighieri, do outro. Ou as tentações de São Paulo, no caminho de Damasco e a improvável relação de António Pigaffeta e Erasmus de Roterdão, num livro que nunca sairá da sua pena. Com muita pena nossa.
A poesia de Arménio Vieira é de uma excelência atravessada por uma maturidade estética só acessível aos «grandes», aos privilegiados por sopro divino ou do destino.
De facto, raros os poetas a quem os deuses concedem a eternidade. Mas a alguns, permite-lhes uma cálida e frutífera longevidade e juventude perene, para amar e deliciar-se com as coisas simples da vida, como o sorriso e o olhar terno de uma filha. E produzir outros filhos, em forma de estrofes e parágrafos, ideias, sentimentos ou a inebriante vertigem de uma hipérbole, que enriquecerão e farão parte de uma família mais vasta, que constitui esse país vasto que é a literatura.
Arménio Vieira eleva-nos a todos nós cabo-verdianos, culturalmente, enquanto povo, com o seu verbo de excelência humana e literária.
Arménio Vieira é um monumento da poesia cabo-verdiana e do mundo.
Ao poeta das calças e mangas enroladas, que primeiro inscreveu o nome das ilhas no Prémio Camões, e que, em criança, também me ajudou a ver o caminho das letras, desejo uma vida ainda mais longa, plena dessa combustão maravilhosa de ideias, que faz dele uma figura ímpar, à parte, em toda a história de Cabo Verde, sobremaneira na literatura.