POR UMA ÁFRICA LIVRE, DEMOCRÁTICA, PRÓSPERA E JUSTA
A democracia e o desenvolvimento da África têm de ser obras dos africanos, de todos os africanos, no continente e na diáspora. Não houvesse outras razões, estas justificam a pertinência desta jornada de reflexão estratégica sobre a democracia substantiva em África, organizada pela Fundação de Inovação para a Democracia. Saúdo, pois, calorosamente o Professor Achille Mbembe, Diretor Geral da Fundação, por este momento cintilante, e a Universidade de Cabo Verde, por acolher tão ousada e vibrante iniciativa.
A sua realização em Cabo Verde é auspiciosa. Somos a África positiva, ambiciosa e ansiosa do desenvolvimento durável. Somos um Estado de Direito Democrático, fundado na liberdade e na dignidade da pessoa humana, onde há separação de poderes, a justiça é independente, a imprensa é livre, os direitos da oposição são respeitados, o poder local democrático é forte e as instituições políticas e económicas são inclusivas e funcionam. Desde a “hora zero da República”, como escreveu o vate, Cabo Verde optou por uma política de paz. Não somos parte dos conflitos e guerras, propugnamos o respeito pelo direito internacional e pela solução negociada dos conflitos. Esta é uma terra de liberdade e democracia, que quer ser útil à humanidade e se propõe ser espaço de diálogo, de encontros, de construção de pontes e de entendimentos, com os olhos postos num mundo muito melhor.
A colonização interrompe o processo de crescimento institucional, político e económico do continente africano. Ela foi um ato de inimizade e de extrema violência, estribado na supremacia branca e na extração intensiva dos recursos naturais.
Como tem-nos alertado Achille Mbembe, a dominação colonial estriba-se essencialmente no racismo e na violência.
As independências políticas não desataram todos os nós da dominação. Novas ferramentas foram criadas, mantendo-se mecanismos muito mais sofisticados de subjugação intelectual e económica. Toda a arquitetura mundial foi desenhada para reproduzir as desigualdades dos “termos de intercâmbio” espiritual e material entre a parte subdesenvolvida e fornecedora de matérias-primas e a parte industrializada e desenvolvida.
Após as independências, ainda na linha de Achille Mbembe, o racismo e a violência mantêm-se em muitos espaços, enquanto instrumentos de conquista e de manutenção do poder das novas elites, com apoio de forças externas interessadas na instabilidade e no caos, como expedientes para inviabilizar as independências e viabilizar a continuidade da rapina de recursos. As instituições políticas e económicas continuaram a ser extrativas, no significado que lhes é dado por Acemoglou e Robinson, em Porque Falham as Nações, incapazes, por isso mesmo, de gerar dinâmicas democráticas e de desenvolvimento durável.
A governança pós-colonial é extraordinariamente exigente. As condições de governabilidade são muito complexas e difíceis: Estados plurinacionais, com fronteiras arbitrariamente desenhadas pelas antigas potências colonizadoras, fragilidade dos recursos institucionais e humanos, mecanismos de reprodução da dominação e uma ordem mundial orientada para o aprofundamento das desigualdades dos “termos de intercâmbio”.
A África continua, mais de 60 anos após as independências, apesar das suas enormes riquezas materiais e humanas, a ser fonte de matérias-primas, sem acrescentar valor, dada à sua debilidade industrial e, consequentemente, à sua inexpressiva participação no comércio mundial.
A pós-colonialidade requer, pois, uma profunda e definitiva rutura com os mecanismos de dominação e a reconstrução nacional deverá estribar-se na formação da nação no espaço territorial herdado, considerando a plurinacionalidade e a artificialidade das fronteiras, na construção do Estado, forte e catalizador do processo de desenvolvimento e na criação de instituições políticas e económicas inclusivas, geradoras de ideias novas, de inovação e de sistemas inteligentes e transformacionais.
Esse processo requer lideranças visionárias e transformadoras. A África precisa, como de pão para a boca, de líderes com sabedoria, dimensão ética e envolvimento cívico com as causas das liberdades civis e políticas, dos direitos económicos, sociais e culturais, e da dignidade da pessoa humana.
A democracia, enquanto espaço de participação na política e na produção de políticas, é essencial nesse processo de rutura e de reconstrução nacional.
O que efetivamente interessa para a África é que haja liberdade de expressão, canais de participação individual e das múltiplas nacionalidades na formação de políticas e no controlo do exercício do poder. Os sistemas presidencialistas atuais têm sido fonte de centralização do poder e do cansaço das instituições. Torna-se evidente que devem ser considerados sistemas de governo que garantam a partilha, os limites e o equilíbrio do poder.
O Estado tem de ser necessariamente democrático e de direito. É fundamental a existência de uma justiça forte e independente e de órgãos de regulação e de controle autónomos e efetivos. Todas as forças políticas e sociais devem discutir, no quadro do pluralismo de ideias e da liberdade de dissenso, e consensualizar as regras do jogo político e estabelecer um pacto cívico que garanta o respeito pelas mesmas regras, a construção de consensos sobre os grandes desígnios nacionais e a realização do bem comum.
Essas mudanças dependem, sobretudo de todos nós, africanos. Temos recursos e capacidades humanas para realizar esta segunda jornada de libertação. A África não é contra ninguém, deve ser pelo desenvolvimento, pela liberdade de espírito, pela dignidade da pessoa humana. No mundo interdependente de hoje, deve defender os seus interesses e estabelecer parcerias “solidárias e duráveis”, como disse o Presidente Macron, com o mundo industrializado e desenvolvido, visando a realização dos sonhos das africanas e dos africanos.
Trata-se de um longo caminho, pejado de atalhos e escolhos, para a liberdade. Só estadistas de elevada estatura conseguirão desincumbir-se de tão alta e grave responsabilidade. Pois a África precisa de estadistas com propósitos, patriotas e eticamente empenhados na defesa dos interesses comuns e na construção de um continente forte, unido, próspero, com oportunidades para todas e todos os africanos e ator relevante na arena internacional.
Esse gigantesco empreendimento humano demanda uma profunda e radical reforma do Sistema da União Africana. Deve-se adotar, na minha humilde opinião, um sistema de governança multinível, com uma clara divisão de trabalho entre a União Africana (UA), as organizações sub-regionais e os Estados. A UA deveria assumir questões mais gerais e complexas que se referem à paz e segurança, migrações, mudanças climáticas, financiamento do desenvolvimento, tecnologias informacionais, designadamente inteligência artificial, e preservação do património natural e cultural.
Em África deve haver circulação de pessoas e bens, num quadro de liberdade e de legalidade. Há comunidades que vivem em vários países, tendo em atenção a artificialidade das fronteiras impostas, e as pessoas dessas comunidades transnacionais devem ter possibilidades de intercâmbio e de livre mobilidade.
A saída massiva de jovens do continente, que fogem das guerras e dos conflitos e da falta de oportunidades, sujeitos aos tráficos e à criminalidade conexa ou à morte no mediterrâneo, é uma chaga que nos envergonha a todos. As pessoas têm direito a emigrar, como o direito de ficar. Temos de criar condições, para cumprir esses direitos e garantir a dignidade da pessoa humana neste nosso martirizado continente.
Quanto às organizações sub-regionais, devem ser refundadas e retomar a sua missão inicial de integração económica.
Essa nova divisão do trabalho implicaria uma profunda reforma a nível dos Estados. A África necessita de Estados que respeitam escrupulosamente os direitos, as liberdades e as garantias dos cidadãos. Nesse sentido, precisamos realizar a nossa revolução liberal, ao mesmo tempo que criamos as condições para uma efetiva participação dos cidadãos no governo. O desafio é criar Estados suficientes e capazes e, por conseguinte, visionários, estrategos e catalisadores do crescimento inclusivo e ambientalmente sustentável. Temos, definitivamente, que ultrapassar a ilusão do Estado mínimo e insuficiente e, por isso mesmo, incapaz de criar ideias novas e de inovar. Quando criámos Estados fortes e liderantes, paralelamente devem ser institucionalizados mecanismos de transparência, responsabilidade e accountability. A Estados suficientes e capazes deve corresponder uma sociedade civil autónoma e pujante e uma cidadania vigorosa e participante.
Pesados investimentos na infraestruturação, educação, ciência e tecnologia, na saúde, na segurança social e na industrialização são fundamentais para a revolução que a África deve realizar no Século XXI.
Este Fórum sobre a Democracia é razão suficiente para o nosso otimismo quanto ao futuro. Quando decidimos escrever o nosso destino com as nossas próprias mãos é sinal de que o futuro será muito melhor.
Temos de continuar a inovar, com liberdade e democracia. Podemos mobilizar todas as capacidades e competências deste rico e majestoso continente para construirmos uma África próspera, justa, desracializada, de paz e amizade, de gente digna, culta e feliz.
Muito obrigado pela vossa atenção!