DISCURSO PROFERIDO POR S.E. O PRESIDENTE DA REPÚBLICA, DR. JOSÉ MARIA PEREIRA NEVES, POR OCASIÃO DA COMEMORAÇÃO DO CENTENÁRIO DE MARIO SOARES

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07 DE DEZEMBRO DE 2024FUNDAÇÃO CALOUSTE GULBENKIAN

Minhas Senhoras e meus Senhores,Participar na celebração do Centenário do Nascimento do Presidente Mário Soares é uma grande honra para mim.

Agradeço, pois, com satisfação, à Comissão Organizadora, na pessoa da Dra. Isabel Soares e do Dr. José Manuel dos Santos, por este convite. Trata-se de um grande cidadão, amigo de Cabo Verde, onde é conhecido e respeitado, pela sua trajetória de vida, mas especialmente pelo facto de acontecimentos históricos o terem ligado ao nosso país. Refiro-me à sua ligação ao processo de descolonização e independência das ex-colónias portuguesas, incluindo as nossas ilhas, no rescaldo do 25 de Abril. Antes, o seu percurso de luta antifascista, também teve no seu bojo a vertente anticolonialista, tendo desenvolvido intensa campanha de denúncia contra a guerra colonial.

Realço igualmente as várias visitas por ele efetuadas ao nosso arquipélago, com destaque para a sua visita de Estado, ocorrida pouco tempo após a sua primeira eleição como Presidente da República Portuguesa, e a sua participação no Simpósio Amílcar Cabral, realizado em 2004, aquando do 80º aniversário do nascimento do líder histórico das independências da Guiné e Cabo Verde.

Mário Soares apoiou entusiasticamente o processo de transição para a democracia em Cabo Verde, foi um intransigente defensor da valorização geopolítica e geoestratégica das ilhas da Macaronésia e muito contribuiu para a construção da parceria especial entre Cabo Verde e a União Europeia.

Antes de ser Primeiro Ministro, nunca tinha falado com o Presidente Mário Soares. Mas, depois disso, tive vários encontros com ele. No nosso primeiro encontro, na Fundação Mário Soares, disse-me que ele sempre achou que Cabo Verde não devia ser independente, devia ser, sim, uma Região Ultraperiférica da União Europeia. Mais tarde, conversamos sobre o regresso de Nino Vieira a Guiné Bissau, e ele disse-me que não tinha nenhuma simpatia por Nino mas que achava que o regresso dele seria útil para a Guiné Bissau, pois, enquanto general e combatente pela Liberdade da Pátria tinha autoridade para contribuir para a reconstrução do Estado naquele país.

Em 2010, no Salão Nobre da câmara Municipal de Lisboa, ele fez a apresentação do meu livro “Uma Agenda de Transformação para Cabo Verde”, na presença do então Presidente da Câmara Municipal, António Costa, e do meu amigo, Carlos Cesar. E, durante a apresentação, disse que Cabo Verde tinha justificado a sua Independência e, por causa disso, ele reconsiderava a sua posição de oposição à independência de Cabo Verde.

No dia 19 de dezembro, agora, estaremos a comemorar os 50 anos de Assinatura do Acordo da Independência de Cabo Verde, entre o PAIGC e Portugal. Por Portugal, o Acordo foi assinado por Melo Antunes, Mário Soares e Almeida Santos e, pelo PAIGC, Pedro Pires, Amaro da Luz e José Luís Fernandes Lopes.Reitero que, por todas estas razões, é com gosto que me associo a esta celebração, em representação do povo do meu país.

Esta cerimónia celebra a vida e a obra de uma das personalidades mais fascinantes e marcantes da história de Portugal por mais de sessenta anos, tendo deixado um imenso legado, na vertente política, cívica e cultural, nomeadamente. Legado que tem contribuído para a imortalidade de um dos rostos e figura de maior projeção da democracia portuguesa.

Desde muito jovem, encetou um vigoroso combate pela liberdade, lutando contra a ditadura então vigente. Como consequência dessa militância política num Portugal amordaçado, amargou a prisão por uma dúzia de vezes, o que não foi suficiente para abalar as suas bem alicerçadas convicções. Esta atitude de desafio provoca a ira do regime, que o empurra para a deportação em São Tomé e Príncipe, e posterior exílio, em Paris.

Com a chegada do 25 de Abril, cujo cinquentenário já se comemorou, este incansável adversário do fascismo encontra terreno fértil para, em liberdade, materializar os ideais democráticos por que tanto lutara por cerca de três décadas. Foi garantido o direito à palavra aos portugueses.

Contribui para a instalação de um regime democrático, quando em momentos particularmente turbulentos, difíceis e sensíveis, teve uma postura de moderação, defendendo a liberdade e a democracia. Empenhou-se na transformação de um Portugal cinzento, num país que respirasse liberdade, que fosse moderno, cosmopolita e próspero.

Uma das figuras mais icónicas do despertar de um novo Portugal, e com grande notoriedade internacional, bate-se pela democracia representativa, pela paz, pela solidariedade entre os povos, pelos direitos humanos e pelo progresso social e económico. Europeísta com convicção e entusiasmo, e com o intuito de modernizar a economia portuguesa, liderou o processo de adesão de Portugal à, na altura, Comunidade Económica Europeia, tendo vindo a assinar o Tratado de Adesão.

Como primeiro Presidente da República civil eleito em democracia, levou para a Presidência um projeto de futuro e de modernidade, e um estilo muito próprio de exercer esse elevado cargo. As suas passagens pela chefia do Governo coincidiram com períodos bastantes complexos, em que Portugal enfrentava muitos desafios sociais, políticos e económicos, de muita exigência para o então Primeiro Ministro.

Mário Soares foi igualmente contemporâneo de grandes líderes democratas europeus, que conseguiram realizar o sonho de prosperidade, cumprindo as promessas de então da democracia. São socialistas e sociais-democratas, como Filipe Gonzalez, François Mitterrand, Willy Brandt, Bruno Kreisky, Sandro Pertini, Andreias Papandréou e Olof Palme, uma liderança de luxo, que marcou o panorama europeu no último quartel do século XX, numa altura em que Mário Soares foi Vice-Presidente da Internacional Socialista.

Conseguiu-se fundar e consolidar Estados de Direito Democrático, porém, as desigualdades sociais permanecem, ocorrência que tem sido corrosiva para os regimes democráticos.

O século XX e os tempos de ação política de Mário Soares permitiram-nos ampliar as liberdades civis e políticas, mas há cada vez mais desigualdades de rendimentos e de riquezas. Com efeito, ainda não se conseguiu resolver a tensão entre liberdade e igualdade. Quando temos mais liberdade, constata-se recuos na igualdade; e quando há mais igualdade, assiste-se a retrocessos na liberdade. O desafio atual é o da construção de sociedades, ao mesmo tempo, mais livres e iguais.

Cinquenta anos depois do 25 de Abril, e com o render da guarda desses protagonistas, assiste-se a uma erosão nas conquistas entretanto alcançadas, e hoje são enfrentados novos desafios, num ambiente disruptivo, que em alguns casos beira o caos.

Tal como no passado, ainda não se conseguiu encontrar antídotos contra os extremistas e, às vezes, vai-se fazendo o jogo deles. O seu objetivo é precisamente entreter-nos em debates irracionais, ilógicos e estéreis sobre questões irrelevantes para a vida das pessoas, criando um clima de caos institucional e de desrespeito e desviando-nos das discussões sobre as questões fundamentais. A insistência na divergência e no caos é bloqueadora de mudanças e de progresso social.

Em dia de celebração do seu Centenário, perante o seu legado, questiono-me sobre a melhor forma de homenagear Mário Soares. Torna-se necessário restaurar o seu sonho e de seus companheiros de luta pela liberdade, igualdade e solidariedade. Nunca desistir, lutar sempre, todos os dias, pelos nossos ideais de construção de uma boa sociedade. As forças democráticas – não há saída fora do quadro democrático – devem acumular sabedoria suficiente, propiciar espaços de discussões e aprender novas respostas institucionais e políticas para os reptos deste Seculo XXI.

Só com muita inteligência, coragem, prudência, serenidade e pedagogia política conseguiremos enfrentar os reptos que se nos colocam nestes tempos disruptivos e complexos. Homenagear Mário Soares é resgatar a nobreza da política e agir todos os dias para realizar o bem comum.

Muito obrigado pela vossa atenção!