Discurso de Sua Excelência Presidente da República, em recepção na Câmara Municipal de Loulé

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Eu sinto-me bem num município. Eu gosto de estar nos municípios em Cabo Verde, em Portugal ou em qualquer outra parte do mundo. Aqui, particularmente, em Portugal, o poder local português foi uma fonte de inspiração para o poder local democrático cabo-verdiano. Nós vamos completar 34 anos de poder local democrático e crescemos.

Hoje, o poder local em Cabo Verde tem uma forte imagem, tem um forte protagonismo a nível do desenvolvimento local e regional e é um pilar essencial no Estado de direito democrático em Cabo Verde.

E os municípios portugueses desempenharam um papel fundamental na instalação do poder local democrático em Cabo Verde e no seu crescimento. Nós fomos crescendo, inspirando-nos no desempenho do poder local em Portugal, e hoje sentimo-nos orgulhosos do que fizemos nestes 34 anos em Cabo Verde.Também porque, no poder local, nos diferentes municípios aqui em Portugal, nós encontramos cabo-verdianos. Portanto, os municípios aqui são também casa dos cabo-verdianos.

E é nessa relação de proximidade com os cabo-verdianos, neste apoio à inserção dos cabo-verdianos, que nós percebemos toda a força da amizade entre Cabo Verde e Portugal. E por isso eu sinto-me bem quando estou numa Câmara Municipal, num Paço do Concelho.

Mas também é gratificante porque, em Cabo Verde, nós somos migrantes antes de sermos cabo-verdianos. Não havia ninguém em Cabo Verde quando os portugueses chegaram lá em 1460, e foram os portugueses em maior número, depois genoveses, castelhanos, e uma massa de africanos, particularmente da costa ocidental africana, que se juntaram nas ilhas e deram origem ao povo de Cabo Verde.

Portanto, nós, os cabo-verdianos, somos resultado desse encontro, desse diálogo, às vezes violento, às vezes nem tanto, mas é desse encontro de culturas, esse encontro de povos que deu origem a Cabo Verde.

E primeiro nas ilhas de Santiago e do Fogo, depois destas ilhas para as outras ilhas, as nove hoje habitadas, e depois das ilhas para o mundo.

O cabo-verdiano é o primeiro povo livre africano a chegar aos Estados Unidos da América, e temos hoje cabo-verdianos espalhados por todo o mundo. Portanto, nós somos um povo de migrantes.

E hoje nós sabemos que há fortes restrições à mobilidade de pessoas. Sabemos também que há discriminação aos imigrantes. Isso deve ser fonte de preocupação para um país como Cabo Verde, onde a migração faz parte da nossa identidade.Nós somos o que somos hoje porque somos essa nação global. Somos esse Estado desterritorializado. Somos esse Estado transnacional.

E quando chegamos ao poder local, percebemos que lá as pessoas entendem a importância da mobilidade humana, entendem a importância dos migrantes, o contributo de todos para o enriquecimento material e também espiritual das diferentes comunidades. E isso é importante. Porque quando nós estamos neste mundo onde tudo é imprevisível, meio caótico, onde temos dificuldade em perspetivar o futuro, em ver os caminhos do futuro, nós temos de ter os pés bem assentes no chão e procurar ter boas práticas para termos uma sociedade sã.

E essa sanidade é construída muito com o poder local, que está à porta das pessoas, que entende as pessoas, as suas preocupações. E isso exige também, e encontramos essa dimensão no poder local, exige muita sabedoria. Porque o poder é mais fácil de ser conquistado.Agora, a questão essencial é a sabedoria para enfrentar os desafios. E a nível do poder local nós encontramos essa sabedoria porque o autarca está ao lado das pessoas, discute com as pessoas todos os dias, conhece a alma, o sentimento, as aspirações das pessoas. E então a política faz-se com mais sanidade.A política faz-se com mais prudência.

E por isso que o poder local é importante, e eu sinto-me bem quando estou no poder local. Quem está no poder central… e vejam, eu já estive numa autarquia, já fui presidente de uma Câmara, já fui deputado, vice-presidente do Parlamento, Ministro, Primeiro-Ministro e hoje Presidente da República. Portanto, eu já joguei em todas as posições. E antes eu era apanha-bolas, porque também coloquei cartazes, fiz jornais de parede, etc.

Portanto, eu já joguei em todas as posições e tenho a verdadeira dimensão do exercício do poder em todos esses espaços. E com certeza que o poder local é o espaço onde se sente com muito mais força a alma das pessoas. E por isso sinto-me bem ao estar no poder local.

E quero, Senhor Presidente, em seu nome, agradecer ao município de Loulé e a todos os louletanos pelo acolhimento. E manifesto esta gratidão precisamente para mostrar que é possível, sim, a integração, e que é possível construirmos sociedades inclusivas onde o diálogo é possível, onde o outro é considerado, onde criamos boas condições de convívio.

E o Senhor Presidente disse que aqui o município é próspero. E é assim que nós construímos a prosperidade. Porque a prosperidade não é de curto prazo. A prosperidade, quando é construída, tem que ser sustentável, tem que ser durável. E a durabilidade tem a ver com o médio e longo prazo, com uma perspetiva mais visionária e não com o “presentismo”, o “curto-prazismo” dos tempos de hoje.A prosperidade tem a ver com a nobreza da política, e não com essa disputa pelo poder que, em vez de humanizar as pessoas, acaba por as animalizar.

E aqui no poder local é que nós construímos os alicerces, as bases dessa prosperidade. Porque entendemos melhor a política da amizade e não a política da inimizade. Entendemos melhor a relação com o outro, a necessidade de conversar com o outro, de construir entendimentos com o outro, em vez de destruir o outro, numa perspetiva mais da necropolítica.

Então, isto é importante aqui neste espaço. E é claro que os tempos são muito complicados, são muito complexos. Exige hoje dos políticos, a todos os níveis, muita ponderação, muita sabedoria, muita prudência, para que a política não seja um espaço, repito, de animalização das pessoas. Que seja um espaço de formação das pessoas. Uma escola de cidadania. Para realizar o bem comum. Para resgatar o que Aristóteles dizia, construir a felicidade das pessoas, e não um espaço de destruição das pessoas.

É claro que nestes tempos de hoje, as pessoas preparam-se mais para conquistar o poder do que para governar e construir a felicidade das pessoas. E, a nível do poder local, essa tensão está sempre presente. O poder local é muito mais escrutinado e avaliado por todos, pela sociedade e por outras instituições. E por isso também que é importante reforçar o poder local em todos os países democráticos do mundo.

Termino, Senhor Presidente, agradecendo pelo facto de ter escolhido Cabo Verde. Nós vamos comemorar os 50 anos da nossa independência neste ano, no dia 5 de julho. Estaremos a comemorar os 50 anos da nossa independência, um bom momento para celebrar Cabo Verde também aqui.E nós sentimo-nos orgulhosos destes 50 anos.

Os cabo-verdianos, todos eles, de todas as ilhas e da diáspora, deram um enorme contributo para a construção de Cabo Verde. Hoje nós conseguimos grandes ganhos no domínio da educação.No momento da independência, 70% da população era analfabeta. Eliminámos o analfabetismo. Criámos um sistema nacional de saúde que funciona.

Era difícil ver a morte das crianças, a taxa da mortalidade infantil em 1975, e hoje Cabo Verde teve ganhos extraordinários em termos de saúde reprodutiva. Hoje todas as mulheres podem ter os seus filhos num centro de saúde com assistência especializada.É o país com um índice mais elevado de cobertura de segurança social na África Subsaariana.

Também nós conseguimos cumprir os objetivos de desenvolvimento do milénio e Cabo Verde hoje é um país de rendimento médio.

Mas em 1975 isto era improvável. Dos cinco países africanos de expressão portuguesa, Cabo Verde era o último dos países, em todos os indicadores. E a desconfiança em relação à ideia da independência era grande.E hoje este país improvável é um país possível. Sentimo-nos orgulhosos disso. E Cabo Verde é um Estado de direito democrático que funciona.

Ontem, durante o voo, eu lia um livro de um polaco e ele dizia que a democracia é o sistema onde os governantes deixam o poder quando perdem as eleições. E em Cabo Verde é isso mesmo. Tem havido alternâncias, a todos os níveis, a nível central e a nível do poder local. E as coisas têm funcionado.

Em 2001, o Presidente da República ganhou por 12 votos de diferença. E não houve confusão. Agora, em 2024, numa das câmaras, o presidente ganhou por um voto de diferença. Um voto. E não houve confusão. É claro que pediram recontagem, fez-se recontagem. Um voto. O apuramento intermediário, um voto. O apuramento da Comissão Nacional de Eleições, um voto. E foi ao Tribunal Constitucional, um voto. Significa que o sistema também funciona. Um voto! Mas não houve confusão.

E Cabo Verde hoje é um país mais próspero do que aquele que nós tínhamos em 1975. E crescemos não só em termos de infraestruturas, em termos materiais, não.

O cabo-verdiano hoje é diferente. Também cresceu do ponto de vista espiritual. Hoje o cabo-verdiano é diferente.

E devemos muito à nossa comunidade emigrada. Se podemos falar das liberdades, se podemos falar da democracia, se podemos falar dos direitos económicos, sociais e culturais, é porque temos esta vasta comunidade espalhada pelo mundo que sempre conseguiu remeter a Cabo Verde a sua experiência de vida democrática, a sua experiência de trabalho, as suas ideias de uma vivência num país mais desenvolvido.

E esta tensão permanente entre aqueles que vivem em espaços socioculturais, económicos e políticos mais desenvolvidos e aqueles que vivem em Cabo Verde, as demandas, as exigências das comunidades emigradas contribuíram enormememente para o crescimento de Cabo Verde. Não só as remessas financeiras que foram importantes, mas também remessas de ideias, remessas de conhecimento, extremamente importantes.

Agora, temos que construir os próximos 50 anos. Nos próximos 50 anos devemos contar com uma contribuição ainda de nível superior desta diáspora cada vez mais qualificada, espalhada pelo mundo.

E encontramo-nos aqui, em Loulé, neste festival de música, que, na verdade, é o nosso diamante. Nós não temos outras pedras preciosas. As nossas pedras preciosas em Cabo Verde são as cabo-verdianas e os cabo-verdianos.

Aliás, conta a lenda que Deus, ao criar o mundo, no sétimo dia foi lá lavar as mãos no Atlântico e os restos que tinha por entre os dedos deram origem às ilhas de Cabo Verde. Aqueles dez grãozinhos de terra no meio do Atlântico.

E, depois de lavar as mãos, o assistente disse-lhe: “Meu Senhor, deixou aqui estas mesgas de terra, deixou tantas riquezas no Brasil, tantas riquezas no Congo, tantas riquezas em Angola, aqui não vai deixar nada?!” E Deus respondeu: “Bom, meu assistente, vai ver o povo que eu vou colocar aqui nestas ilhas”. E colocou as cabo-verdianas e os cabo-verdianos.

Então, nós aprendemos, desde esse dia da criação, a inventar um país para viver. E é esta a grande proeza dos cabo-verdianos, é criar um país para viver. E, então, é por isso que nós fazemos música, dançamos, somos alegres, temos a grande morabeza cabo-verdiana e são essas as grandes riquezas de Cabo Verde.

E, depois, temos um país estável, uma democracia que funciona e que quer realizar, e Cabo Verde hoje representa a África positiva, a África que quer crescer, que quer desenvolver-se, que quer que as pessoas vivam com dignidade.

São esses desejos, essas ideias, essa forma de estar no mundo que constituiu a grande força, as nossas pedras preciosas. O soft power, como dizia Joseph Nye.

E, então, eu termino agradecendo pelo festival e por trazer aqui a música cabo-verdiana que também cresceu muito com a independência. Hoje vamos ouvir o Ferro Gaita, o Funaná, que era música do quintal e hoje veio para a sala e mostrou-se ao mundo como uma grande energia, uma grande força do cabo-verdiano. E vamos ouvir os Tubarões amanhã, sábado – bom, infelizmente não vou estar aqui – mas também que mostra toda a força do percurso de Cabo Verde.

Lembra-nos os Tubarões Azuis, a seleção do futebol. E a nossa seleção do futebol, nós somos os únicos animais marinhos nessa disputa, não é? Mas também temos mostrado a grande força do cabo-verdiano através dos Tubarões Azuis.

Num dos aniversários de independência, eu ainda era primeiro-ministro, foi uma ministra da China para representar a República Popular da China nas comemorações. E chegou lá e disse-me: “Senhor Primeiro-Ministro, qual é o segredo de, sendo um pequeno país, terem uma seleção de futebol de que todo mundo fala?” Eu disse: “Não, a senhora não conhece bem Cabo Verde, que nós não somos um pequeno país, nós somos grandes, nós estamos espalhados por todo o mundo”.

E a nossa seleção é a seleção deste Cabo Verde global, os jogadores estão em todo o mundo. É basquete, é andebol, é futebol, os Tubarões Azuis estão espalhados por todo o mundo. Estão em todos os oceanos.

Então, e também temos o conjunto musical dos Tubarões que estiveram com força na mobilização para a independência de Cabo Verde. Depois od Bulimundo, agora o Ferro Gaita e todos esses grandes artistas cabo-verdianos.

Então, nada melhor, Senhor Presidente, do que homenagear Cabo Verde nos 50 anos da nossa independência com a música, que mostra a alma, a grandeza, a força do povo cabo-verdiano.

E queria também, permita-me, sei que não se vai recandidatar, vai sair em outubro, prestar-lhe uma homenagem por tudo o que fez pelos cabo-verdianos aqui neste município. Gostaria de prestar-lhe uma homenagem e de mostrar-lhe toda a gratidão enquanto Presidente da República de Cabo Verde.

O Presidente de Cabo Verde é a síntese desta república global, transnacional, desterritorializada. E em nome desta República, que eu gostaria de prestar-lhe hoje esta homenagem aqui nos Paços do Concelho de Loulé e dizer-lhe que os cabo-verdianos louletanos se sentem gratos por tudo o que fez não só por aqui, por esta cidade, pelo Algarve, mas também por Portugal.

E é um bom exemplo, é uma boa referência de como juntos podemos fazer muito pela humanidade. Integrando todos, considerando todos, dialogando com todos.

E terminaria mesmo com o Eclesiastes. Hoje é tempo de, cada vez mais, procurarmos criar esses momentos positivos, esses momentos de encontro, esses momentos de diálogo. É por isso que eu lhe presto homenagem em nome de todos os cabo-verdianos.

Agradeço e peço-vos desculpas se fui longo, mas é que os 50 anos não ficam resumidos assim em tão pouco tempo.

Muito obrigado.