Intervenção de Sua Excelência, o Presidente da República, José Maria Neves, por ocasião da abertura da 4. ª edição do DjarFogo International Film Festival

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Feito de improviso

Na verdade, Cabo Verde é um país extraordinariamente rico. Recentemente estive na Assembleia Nacional a assistir à pré-apresentação do filme “Sodadi”, com cabo-verdianos nos Estados Unidos da América e atores aqui de Cabo Verde, é mais uma produção nacional, em estreita articulação com um canal de televisão aqui em Cabo Verde e pudemos ver o esforço, o talento da equipa. Mas também temos visto jovens cabo-verdianos desde a Samira Vera-Cruz e muitos outros em vários espaços em África e no mundo que se destacam na produção e na realização de filmes e temos acompanhado muito de perto também o trabalho que a Associação Cabo Verdiana de Filmes tem feito.

Aliás na próxima semana haverá também um certame com a apresentação de pequenos filmes ligados à ação climática e agora aqui o trabalho a todos os títulos muito louváveis, com uma grande ambição, com uma visão muito grande do desenvolvimento do cinema em Cabo Verde, envolvendo a universidade, envolvendo estudantes, envolvendo produtores nacionais e internacionais, que o Guenny Pires e toda a sua equipa tem feito neste espaço do DjarFogo International Film Festival. Então é importante estar aqui para valorizar, para dar a devida dimensão a este festival.

As primeiras sementes já foram lançadas, agora temos que trabalhar juntos, de mãos dadas, para, cada vez mais, dar uma dimensão maior a este festival. Hoje de manhã eu ouvia o Guenny Pires na Rádio deCabo Verde e a ambição é grande, temos, as universidades, os centros culturais, as embaixadas, as diferentes escolas do país, de juntarmos as mãos para que este festival ganhe efetivamente uma grande dimensão a nível nacional e a nível internacional. Cabo Verde tem também excelentes condições para a produção, para a realização de filmes, basta ver o filme “Sodadi”, que foi todo ele rodado na Ilha do Fogo, em São Felipe, e com imagens extraordinárias.

Eu acho que quando este filme foi apresentado em Paris, no dia seguinte muita gente estará a marcar viagem para a Ilha do Fogo, para ver a riqueza da ilha, o património construído na ilha, a Ilha dos Sobrados, mas também para conhecer aquele mercado, para ver a grandeza do Vulcão do Fogo, ou para ver a riqueza das manifestações culturais da Ilha do Fogo.

E o cinema tem essa transversalidade. O cinema pode mostrar-nos a riqueza cultural de um determinado país, a riqueza histórica de um determinado país, pode mostrar-nos toda a riqueza do património construído num determinado país, pode mostrar-nos a riqueza literária de um determinado país. Basta ver, por exemplo, que “O Testamento do Senhor Napumoceno da Silva Araújo” foi adaptado ao cinema, o livro de Germano Armeira, basta ver que “Ilhéu de Contenda”, de Teixeira de Sousa, foi também adaptado ao cinema, e o “Chiquinho”, de Baltasar Lopes da Silva. Portanto, há aqui a transversalidade que o cinema pode trazer-nos para o espaço público.

Mas, para além disso, eu tenho insistido em como, no domínio das economias criativas, no domínio do entretenimento, estamos muito abaixo do nosso potencial. Estamos muito abaixo do nosso potencial! Temos enormes potencialidades, e se conseguíssemos ter uma visão mais ampla, se tivéssemos mais ambição, mais ousadia, estaríamos muito mais avançados.

É por isso que devemos valorizar esse esforço enorme que Guenny Pires e toda a sua equipa fazem para organizar o DjarFogo International Film Festival. Eu também felicito o Guenny e toda a sua equipa pelo seguinte, neste ano estamos a comemorar o Centenário do Nascimento de Amílcar Cabral.

Este festival é um pouco uma homenagem àqueles que lutaram pela independência. No próximo ano, estaremos a comemorar 50 anos da nossa independência. E é bom fazermos uma reflexão sobre o percurso que já fizemos, não só para celebrar o passado, mas sobretudo para projetar os próximos 50 anos.

Vejam, até 1975, praticamente, o batuque, o funaná, eram proibidos. A tabanca. Eu sou do tempo em que, se na véspera, quem quisesse organizar uma festa de batizado, fizesse uma celebração com “bádju gaita” ou batuque, corria o risco de não ser batizada a criança ou de não ser realizada a cerimónia de casamento. Eu sou desse tempo.

Mas também do tempo em que era proibido falar a língua cabo-verdiana nos corredores da escola, corríamos o risco de uma falta disciplinar se fôssemos pegos a falar o crioulo. E sou também do tempo, não sou tão velho assim, mas sou também do tempo em que foi possível ver a explosão dessas manifestações com a independência.

A independência, a liberdade, enquanto não subjugação, foi uma coisa extraordinária. Permitiu-nos mobilizar todas as energias e todas as capacidades do país. Em 1975, para nós, não havia impossibilidade.

Em 1975, as energias eram tão fortes, estávamos tão crentes das nossas capacidades e que pensávamos que era possível fazer milagres. E graças à luta de libertação. Graças à independência.

Então temos de ter, através dessas pequenas manifestações, a ideia da grandeza que foi o ato da independência. Não há nada mais sublime na vida de um povo do que a sua luta contra a subjugação. E é claro que hoje temos outras formas de subjugação. Temos outros medos, outras impossibilidades. E através das manifestações culturais. Através da libertação das nossas capacidades criativas, através da criação de novos espaços de inovação, nós poderemos de novo ousar e ultrapassar e vencer esses novos obstáculos, essas novas formas de subjugação. Então o cinema nesse sentido é extraordinariamente importante.

Eu acho que aqui é um pontapé de saída para desenvolvermos mais o teatro. E temos o teatro, vejam, Mindelact, o Festival Fladu Fla. Recentemente assistimos a História de um Homem Grande, que é Amílcar Cabral. Agora passou-me o nome do grupo que fez no 20 de janeiro, nas comemorações do 20 de janeiro deste ano, no quadro das celebrações do centenário do nascimento de Amílcar Cabral.

E um conjunto de outros livros que estão a ser adaptados por vários grupos de teatro aqui em Cabe Verde. Também o cinema, a literatura. Eu acho que este festival é um espaço extraordinariamente importante para discutirmos e, sobretudo, para descobrirmos todas as potencialidades que nós temos na área das indústrias criativas, na área do entretenimento, mas aqui neste caso particularmente na área do cinema. Então, Guenny, permita-me felicitar-vos por trazer gente de fora para conhecer Cabo Verde, para ver as nossas enormes potencialidades. E eu acho que precisamos insistir, precisamos ser ousados, precisamos trabalhar com muita força nesses diferentes domínios a que já fiz referência, para podermos crescer a nível do nosso potencial.

E penso que as universidades têm aqui enorme possibilidade. Vejam o design aqui em Cabo Verde. Vejam o teatro, vejam a música. Eu acho que Cabo Verde, definitivamente é o país com mais músicos por metro quadrado. Cada dia descobrimos coisas lindas, extraordinárias. Quer do antigamente, quer dos tempos atuais. Coisas extraordinárias, não é? A moda, o artesanato.

Então, que as universidades aproveitem destes enormes talentos que nós temos, para criarmos muito mais e andarmos mais depressa. E eu, e termino, também sobre o tempo em que logo depois do 25 de Abril no liceu já não havia bibliografia.

Porque a bibliografia era da época colonial. Tirando ciências, mesmo ciências. Ciências havia um peixe, que não tinha nada a ver com os nossos peixes, que nós estudávamos o esqueleto, etc., do peixe. Mas, pelo menos, era mais neutro. Também a matemática, físico-química, essas matérias eram mais neutras.

Mas, estão a ver a disciplina de história, a disciplina de geografia, a língua portuguesa, etc. Eram já disciplinas com uma ideologia muito forte do colonial fascismo. Então, com o 25 de Abril, deixamos de ter bibliografia. Os professores tinham de fazer um esforço enorme para dar aula. Ou filosofia, ou política, também tínhamos enormes dificuldades e não tínhamos biografia. Mas os professores, alguns ainda estão vivos, eram jovens que tinham vindo das universidades, faziam pesquisas e davam-nos aulas.

E houve uma professora, aqui da Praia, que ainda também está viva, não vou dizer o nome para não denunciar a idade, que nos falou da história da literatura cabo-verdiana, mas, com os dados, com os conhecimentos que ela tinha na altura, e falou-nos dos Nativistas, Eugênio Tavares, Pedro Cardoso. Mas, deu-nos uma ideia em como eles eram quase que marginais na história da literatura a cabo-verdiana. E ficámos com muitos preconceitos em relação, eu e a minha geração, em relação aos nativistas na literatura, mais a ideia dos Pré-Claridosos.

Mesmo dos Claridosos, a ideia é que não estiveram suficientemente envolvidos no processo de luta pela independência. Na literatura era excessivamente politizado, partidarizado, como agora.

Então, o que é que aconteceu? Depois de vários anos, Félix Monteiro fez uma pesquisa da obra de Eugênio Tavares e publicou os dois volumes com as cartas, as polémicas e os poemas de Eugênio Tavares.

E depois outros publicaram coisas do Pedro Cardoso, na Ilha do Fogo. Januário Leite e José Lopes. Mais esses, Guilherme Dantas, ainda foi muito depois. Mas o José Lopes, o Januário Leite. Então, quando eu fui ao lançamento do livro de Eugênio Tavares, os dois volumes, levei para casa e naquela noite li alguns textos de Eugênio Tavares. Eu disse, as aulas não tinham absolutamente nada a ver com isso.

O que é que nós tínhamos? Não tínhamos o conhecimento suficiente da riqueza da obra dos Pré-Claridosos, particularmente do Pedro Cardoso e do Eugênio Tavares, mas também a profundidade, a grandeza da obra do José Lopes. Mais clássico, mas também de um nível extraordinário.

Então, esses momentos aqui, são momentos para aprofundarmos a investigação, para aprendermos mais sobre a nossa história. Para aprendermos mais sobre o nosso percurso identitário, mas, sobretudo, para descobrirmos as nossas capacidades, as nossas possibilidades e os talentos. Porque se o Eugênio Tavares, no final do século XIX e início do século XX, pôde produzir o que produziu, imaginem nós nesta Universidade e com as possibilidades que nós temos neste momento. Portanto, é fundamental termos este espaço de criação.

Mas, também, eu estava a ver hoje de manhã um artigo sobre as eleições nos Estados Unidos. O que é que influencia, porque é que um pode ganhar, porque é que o outro pode ganhar e etc. E então, eu vi que 40% dos jovens, até os 30 anos, basicamente sabem das informações através do TikTok.

Não tem mais outros dados, não tem mais outros elementos para fazerem o debate. Agora, imaginem quantos aqui em Cabo Verde têm informações através do Facebook. Eu acho que agora até há estudantes que acompanham as aulas, tenho certeza que nenhum dos que estão aqui, que acompanham as aulas abrindo o livro com o seu telemóvel lá dentro para ver o que é que se passa no Facebook.

Mas essas informações que nós temos através das redes sociais não produzem conhecimento, não produzem sabedoria. Não dão-nos a experiência da vida. São experiências fugazes, instantâneas, que não nos permitem ter aqui a verdadeira dimensão das coisas.

E hoje não há tempo para debate, não há tempo para discussão, tudo é instantâneo. O filósofo Daniel Innerarity diz que vivemos tempos gasosos, tudo é instantâneo. Vivemos numa perspetiva, num “curto prazismo” extraordinário.

Não temos muitas experiências, muito conhecimento, as coisas não são feitas com sabedoria. Estamos cada vez mais ansiosos e mais do que isso, não temos paciência para produzir conhecimento. As informações do Facebook, do TikTok e do “TokTik” já chegam.

Então, ter esse espaço aqui para vermos um filme, podermos ter tempo para discutir, para refletir, é extraordinariamente importante. É uma outra forma de aprendizagem. E é por isso que eu sempre, mesmo havendo pouco tempo, abro a oportunidade de participar em eventos desta natureza.

Então, que depois deste festival, tenhamos mais conhecimento, mais sabedoria para podermos aproveitar muito mais dos talentos, das capacidades que nós temos aqui em Cabo Verde. Talentos que ultrapassam a nossa capacidade de fazer um filme com todos os “Fs” e “Rs”. Então, desejo muitos sucessos aqui.

Parabéns, também à Universidade para receber iniciativas desta natureza. E espero que este festival se afirme cada vez mais e possa efetivamente contribuir para que nos próximos 50 anos possamos abrir novas possibilidades para este país que é Cabo Verde.

Muito obrigado.