Discurso proferido por O Presidente da República, por ocasião do III Congresso Internacional da…

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Discurso proferido por S.E. O Presidente da República, por ocasião do III Congresso Internacional da Ordem dos Médicos Cab…

É com grande prazer e honra que me dirijo à classe médica cabo-verdiana no dia em que se assinala o dia do médico cabo-verdiano e os vinte anos da Ordem dos Médicos, a primeira ordem profissional do país que pelo, seu pioneirismo, pela estabilidade que tem demonstrado e pela participação na construção do Sistema Nacional de Saúde, pode ser considerado um interessante indicador do percurso que a nossa Democracia tem seguido.

Excelentíssimas Senhoras, Excelentíssimos Senhores,

Neste dia grande para todos vós, saúdo-vos calorosamente e expresso o grande reconhecimento pelo esforço que consentem no dia-a-dia, para que tenhamos condições de saúde e de bem-estar cada vez melhores.

A Constituição da República que franqueou os caminhos para a livre organização profissional e para a delegação de poderes do Estado a determinadas entidades de classe, é apenas cinco anos mais velha do que a Ordem e a sua realização plena, conhece, como a Ordem, uma trajectória feita de aprendizagem permanente e de recriação no nosso espaço, de experiências de outras paragens, de sucessos e fracassos acumulados pelos que nos antecederam.

Acredito que, nesse percurso, aprendemos a valorizar a estabilidade e a segurança, condições fundamentais para a ambição de construir o futuro com dignidade, liberdade e justiça.

Da mesma forma que o nosso sistema politico é considerado um exemplo para vários países, talvez não seja descabido considerar a Ordem dos Médicos, pelo menos no que se refere à estabilidade, um exemplo para organizações similares.

É provável que essa característica esteja relacionada com a história da classe médica no país, que os profissionais procuram preservar, sem deixar de edificar novos projectos integrados em tempos novos.

Essa história tem no perfil ímpar de alguns dos seus pioneiros um dos seus traços marcantes. Todos sabemos que, pela natureza da profissão, mas também pelo carisma, dedicação e humanismo de alguns médicos em tempos idos, o prestígio e o grau de confiança nesses profissionais foram, quase sempre, muito acentuados na sociedade cabo-verdiana, tendo, alguns, sido celebrados e homenageados por músicos populares.

Seria interessante recordar que, nessa linha, aquando da Independência Nacional, com a saída de médicos portugueses, ficaram no país apenas treze que, com a sua tenacidade e o indispensável apoio da dedicadíssima classe de enfermagem, mantiveram, em condições particularmente difíceis, os serviços em funcionamento.

Felizmente, pouco tempo depois, um grupo de jovens, que, mal terminou a licenciatura, renunciou à formação especializada e decidiu regressar ao país, com a cara e a coragem, para cuidar da saúde de uma população que acabara de conquistar a independência, em condições particularmente difíceis. Alguns deles encontram-se nesta sala.

Foram tempos simultaneamente muito duros e exaltantes, uma época em que esses médicos, juntamente com muitos outros profissionais, jovens ou menos jovens, acreditaram que era possível construir uma Pátria tendo por base a perseverança e a tenacidade do Povo destas ilhas.

Nunca é demais recordar que, durante muito tempo, concelhos ou ilhas inteiras ficaram sob a responsabilidade de um único médico, ou mesmo sem nenhum, tendo os profissionais de se desdobrar em visitas periódicas a todas as localidades. Felizmente a tradição dessas visitas se mantém. É verdade que o sistema sobreviveu, também, graças à entrega, quase heroica, da classe de enfermagem, dos profissionais de farmácia e de outros quadros da saúde nomeadamente, do sector de diagnóstico.

Naturalmente, com o passar do tempo, a situação foi evoluindo positivamente. Outros quadros da saúde regressaram ao país, novos se formaram e a cooperação internacional passou a ter papel importante.

É de justiça, ainda, lembrar que boa parte dos médicos, que nos primeiros tempos deixaram tudo para regressar ao país, estiveram na linha da frente do movimento, iniciado, ainda, no período de partido único, que conduziu à criação de uma associação. Como esta não preenchia as condições necessárias ao desenvolvimento e defesa da classe, teve-se de aguardar o advento da Democracia para a Ordem ver a luz do dia.

Foi nesse novo contexto que, como sabemos, os médicos iniciaram um processo que tinha por escopo a criação da sua ordem e que evoluiu para a estruturação das bases legais de enquadramento de todas as ordens profissionais.

A Ordem dos Médicos foi a primeira a ser criada em Cabo Verde e, ao longo de vinte anos, tem prestado a sua importante contribuição ao país.

Minhas Senhoras e meus Senhores,

Vários serão os factores que terão contribuído para a consistência que a Ordem dos Médicos tem apresentado, mas estou certo de que os referidos estarão entre eles.

A bandeira “Um legado novas oportunidades” encerra mensagens de grande pertinência que contem propósitos que, nos dias de hoje, assumem uma inquietante actualidade.

Existe uma vertigem no sentido de se viver o aqui e agora, fazendo dos acontecimentos uma sucessão de momentos isolados, ao invés de serem concebidos como partes de processos com dinâmicas próprias.

Se essa postura pode ter consequências negativas ao nível individual, podem ser nefastas no campo institucional, conduzindo a um eterno e perigoso recomeçar.

As referências perdem sentido e a perspectiva de futuro deixa de ser uma necessidade norteadora.

O antídoto para esta realidade não é a glorificação do passado, a sua perenização.

A realidade cabo-verdiana de hoje tem muito pouco a ver com a que se viveu em 1975, altura em que boa parte dos quadros das diferentes áreas da saúde ainda não tinha nascido.

O mundo mudou muito. Cabo Verde mudou bastante. A Saúde alterou-se significativamente. Os conceitos modificaram-se, os conhecimentos evoluem a um ritmo nunca visto, as políticas conhecem mudanças de peso. Os instrumentos de intervenção melhoraram muito significativamente. As sociedades, as pessoas, os pacientes, hoje são muito diferentes.

A Biologia molecular, a nanotecnologia, a inteligência artificial, a engenharia genética, a descodificação do genoma humano, introduziram alterações radicais nos parâmetros que enformavam a intervenção médica, aumentando, de modo muito expressivo a capacidade de diagnóstico, prevenção, controlo e tratamento das doenças.

Mas as mulheres e homens continuaram a nascer, viver, sofrer e morrer. Por incrível que possa parecer há, ainda, gente, mesmo entre nós, que morre por falta de assistência médica ou de acesso a medicamentos. Apesar da globalização tender para alterações dos perfis epidemiológicos clássicos, as condicionantes socioculturais das doenças continuam a ter peso determinante. Continuamos a ter doenças características de regiões ricas e outras próprias de cenários onde a pobreza e a exclusão são dominantes, para além das chamadas áreas de transição.

Como se pode verificar, as grandes e profundas mudanças não significam, necessariamente, o desaparecimento de todos os vestígios do passado. Se isso é verdade no que se refere à realidade concreta, não deixa de a ser, também e por maioria de razão, no tocante a valores.

Há ideias, conceitos, atitudes, comportamentos do passado, que devem ser abandonados ou significativamente alterados, especialmente quando não se baseiam em evidências cientificas ou são manifestamente prejudiciais.

Mas há que ter em conta que determinados valores tendem a ser permanentes, porque inerentes à condição humana.

A valorização da Vida, a solidariedade, o respeito pela dignidade humana, o compartilhar da dor de quem sofre, a essencialidade da relação médico-paciente, são valores que vêm do passado e que os avanços da tecnologia não devem, ou melhor, não podem, fazer desaparecer, sob pena da total descaracterização de tal relação.

Os grandes avanços tecnológicos são essenciais para o desenvolvimento da Medicina. A sua apropriação é fundamental para que as doenças possam ser melhor prevenidas e tratadas. As novas oportunidades devem ser aproveitadas até o limite. Trata-se de um imperativo cientifico e ético.

O conhecimento, particularmente quando está ao serviço do homem, deve, sempre, franquear fronteiras.

Há que aproveitar as novas oportunidades. Há que ir o mais longe possível e quanto melhor elas estiverem alicerçadas em legados consistentes, maior será o seu alcance.

Minhas Senhoras e meus Senhores,

Não resisto à tentação de referir um facto muito recente que me impressionou de forma muito particular. No passado mês de Novembro, durante uma deslocação a Portugal, efectuei uma visita à Fundação Champalimaud que, como sabem, é um dos maiores centros de investigação do mundo e recebe pesquisadores de todo o planeta, inclusive uma doutoranda em Ciências Farmacêuticas de Santa Catarina de Santiago.

Na Fundação desenvolve-se essencialmente investigação de ponta nas áreas de oncologia e de neurociências.

Para além das informações sobre as inúmeras pesquisas em curso, o que verdadeiramente me impressionou foi a grande importância atribuída às relações humanas manifestadas de diversas formas e em todas as fases de intervenção.

De destacar que uma das preocupações centrais da instituição é a aplicação dos resultados das investigações à clinica para aliviar o sofrimento das pessoas. Na verdade, milhares de intervenções e consultas são realizadas anualmente com esse objectivo.

Igualmente, uma das marcas da Fundação, cuja arquitetura já foi concebida com tal propósito, é a estreita interacção de pesquisadores, terapeutas, doentes e seus familiares, como forma de concretizar, na prática, a tese dos grandes benefícios para o doente, que uma estreita relação entre esses agentes acarreta.

Minhas Senhoras e meus Senhores,

É claro que se trata de um sistema sofisticado e que exige muitos recursos. Mas o que importa ressaltar é o conceito, a preocupação de colocar a pessoa, como preconiza a nossa Constituição, no centro de todas as coisas.

Essa abordagem desmistifica a crença de que a especialização e a investigação de ponta implicam, necessariamente, um distanciamento entre a pessoa e o terapeuta.

Sim, o projecto em apreço exige avultados investimentos, mas creio que, sejam quais forem os recursos disponíveis, é possível, necessário, imprescindível, diria, a operacionalização desse conceito, por razões científicas, humanas, éticas.

No nosso país essa postura é fundamental em diversas áreas e na da saúde, penso que a Ordem, em parceria com as autoridades, pode ter um papel determinante.

Entendo que temos de ter muita criatividade e um elevado grau de compromisso com o bem-estar das pessoas para podermos, num país arquipelágico e com uma população muito dispersa, fazer com que o desigual acesso ao bem essencial, que é a saúde, seja cada vez menos acentuado.

Temos, também, na área da saúde, de combater as assimetrias regionais. Não se pretende, naturalmente, ter hospitais centrais e especialistas em todas as ilhas e concelhos, mas de encontrar uma forma que permita a todo o cabo-verdiano beneficiar muito mais de um sistema de saúde que é de todos. Creio que também no domínio da saúde devemos e podemos ter a ambição de estarmos entre os melhores.

Não tenho dúvidas de que podemos contar com o empenho da classe nessa complexa e nobre empreitada.

Aliás, os Congressos que ora se iniciam, ao se debruçarem sobre temas de grande pertinência e actualidade, que vão de questões epidemiológicas nas perspectivas nacional e global, a estudos clínicos e à formação, passando pelo cada vez mais importante problema da Ética vai, sem dúvida, trazer contribuições de vulto para essas como para outras grandes indagações dos médicos e da população.

Na oportunidade, agradeço as generosas palavras que me foram dirigidas e saúdo de forma efusiva todos os presentes, particularmente os que vieram de fora da Praia e muito especialmente os oriundos de Angola, Brasil e Portugal.

Desejo que estes dias de trabalho sejam profícuos e que as trocas de experiência entre médicos da CPLP seja mais uma trave na construção de um edifício que deve ser muito mais das pessoas e das comunidades do que do Estado.

Declaro aberto o III Congresso Internacional da Ordem dos Médicos Cabo-verdianos e o VII Congresso Médico Nacional.

Muito Obrigado.