Nota do Presidente da República sobre a Lei que define pensão financeira a atribuir às vítimas de tortura e maus tratos, ocorridos em São Vicente e em Santo Antão, em 1977 e em 1981.

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Tendo recebido, para efeitos de promulgação, acto legislativo que define pensão financeira a atribuir às vítimas de tortura e maus tratos, ocorridos em São Vicente e em Santo Antão, em 1977 e em 1981, respectivamente, cumpre-me dizer o seguinte:

1. O Presidente da República reconhece o mérito do diploma, no sentido de que busca uma finalidade nobre, a de compensar cidadãos cabo-verdianos que foram vítimas de abusos de autoridade pública, num contexto político – de regime de partido único – onde os meios disponibilizados para a reintegração plena da legalidade posta em crise eram limitados e condicionados, pela própria natureza das coisas.

2. É razoável e perfeitamente aceitável um olhar crítico sobre o passado, de sorte a poder corrigir graves injustiças cometidas ou, pelo menos, compensar, de alguma forma, as suas vítimas, desde que tal seja levado a cabo com objetividade, contenção, sentido de justiça e adequação e proporcionalidade, sem crispações desnecessárias, pois que, na diversidade de legítimos e salutares posicionamentos políticos e filosóficos, como é normal em democracia pluralista, devemos sempre procurar fazer prevalecer a imagem de um país estável, moderno e civilizado, a coesão social e o envolvimento de todos na construção do novo modelo de Estado constitucional de direito democrático desenhado na Lei Fundamental de 1992.

3. Se o fundamento para a compensação financeira é a circunstância de se ter sido vítima de tortura e maus tratos, então não faz sentido restringir tais abusos num tempo e num espaço determinados. É que, deste modo, se está a dizer uma de duas coisas: os maus tratos ocorridos em outros lugares e ou numa outra data não merecem esta protecção legal, o que é manifestamente desrazoável; ou, então, se está a dizer que existe a certeza de que a prática de actos que ferem gravemente a dignidade da pessoa humana, traduzidos, designadamente, em tortura e maus tratos maus tratos físicos e psíquicos significativos, só ocorreu em S. Vicente em 1977 e em Santo Antão em 1981, o que não corresponderia à verdade, pois uma tal versão contraria factos outros facilmente testemunháveis, verificados noutros pontos do país, e que, aliás, foram objecto de denúnicia, ao tempo de sua prática, junto de organismos internacionais ligados à defesa dos Direitos Humanos (Amnistia Internacional, v.gr., em 1981/82, nos casos de Santo Antão, em 81 e da Brava, em Setembro de 1979), por parte de conhecidos cidadãos e organizações de cabo-verdianos.
Aliás, se o fosse, também não fazia sentido a lei fazer tal recorte no tempo e no espaço, bastando que inscrevesse na previsão normativa as vítimas de tortura e de maus tratos.

4. Não pode o Presidente da República deixar de estar de acordo com a necessidade de o Estado de Cabo Verde atribuir uma compensação financeira às vitimas de São Vicente e de Santo Antão, pois que ela se mostra justa e razoável.

5. Porém, não me parece que exista qualquer razão forte e válida para se excluir do âmbito da proteção da norma outros cidadãos que, no regime de partido único, possam ter sido vítimas de tortura e maus tratos por parte das autoridades.

6. Assim, não deixando de promulgar o presente diploma, em nome do essencial, entendo que devo apelar ao Governo e às forças políticas no Parlamento para reavaliarem, logo que possível, a possibilidade de adoptar medidas legislativas que possam conferir um sentido mais genérico ao presente diploma, estendendo a sua abrangência a todo o território nacional e a um espaço temporal mais alargado.

7. Para além disso, penso que é importante que a lei defina os meios e procedimentos para a certificação dos factos justificantes da atribuição da pensão, de forma objectiva e séria, tomando sempre as devidas cautelas para evitar aproveitamentos indevidos das compensações que vierem a ser instituídas, remetendo-se a intervenção do governo apenas para a fase final de homologação ou validação.

Praia, 31 de Agosto de 2019