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MENSAGEM DE S.E. O PRESIDENTE DA REPÚBLICA, DR. JORGE CARLOS FONSECA ALUSIVA AO DIA MUNDIAL DA LINGUA MATERNA
21 DE FEVEREIRO DE 2020
Da língua-mãe e do seu afago, no Dia Mundial da Língua Materna.
Não há nada que nos possa fazer sentir tão nós mesmos como a nossa língua materna. Não há nada que nos possa aproximar mais daqueles de que gostamos, nossos pais, filhos, irmãos, família e amigos do que a nossa língua materna. Não há sonho, desejo ou pensamento mais intrínseco e cúmplice do que aquele que é expresso ou sentido na nossa língua. Este código de sons acompanhado de gestos, expressões faciais, trejeitos, é um espaço dentro do espaço maior e do todo que está à nossa volta. É a roupa espiritual que vestimos, ao levantar, e que nos acompanha ao longo do dia, a ferramenta com que fazemos a alegria e o bem-estar dos outros, com quem nos vamos cruzando, nos nossos afazeres.
A língua será, talvez, o músculo mais importante de todo o nosso corpo. Permite-nos aquilo que é um dado adquirido e sequer nos lembramos desse facto. Com ela construímos frases e ideias, que descendem dos primeiros cantos com que imitámos a Natureza em volta. Nela nos refugiamos quando, fora da pátria, nos cansamos das outras, meramente ou institucionalmente utilitárias.
É a chave que abre as portas do conhecimento, como se disse muitas vezes; a entrada para o jogo do pião, do arco de correr, da galinha espantada pelo quintal, de campeonato de futebol entre bairros, ou do voo inescapável de uma garça ou de avião. Mas também para um jogo de vídeo ou troca de mensagem no telemóvel, declaração de amor; para uma boda e festa de aniversário, festa popular, ‘guarda-cabeça’ ou funeral; para o abraço de quem chega, as lágrimas de quem parte, o invólucro da esperança e fé.
É, também, a tessitura, o recheio, o corpo da nossa Morna. Aqui ela atinge todo o seu esplendor poético e nostálgico, resumindo toda a nossa dimensão como povo.
A nossa língua materna é a carícia do regaço da nossa avó e o universo de estórias ao entardecer. Mas também é o mundo longe e complexo entrando por nós, traduzido em nossos vocábulos, descodificado, ponderado, sopesado, medido, incorporado na nossa maneira de espreitar essa janela imensa do horizonte.
Em cada ilha, uma língua própria da nossa língua-mãe; cada ilha com o seu modo de a mastigar, saborear, crispar, incidir, moldar ao quotidiano e requebro do dia e da noite, cutelo, do vale e da achada, do porto e da aldeia, da cidade e do campo. De todas as outras línguas que falemos, ‘extra-berço’, mesmo naquelas em que, habitualmente, até agora, escrevemos, tratamos, pensamos, estudamos, ensinamos, despachamos, aprendemos, obedecemos, negociamos, essas outras também podem ser nossas, e são-no, verdade. Mas é essa brisa espiritual que marca o nosso regresso à língua de leite, materna. Enche-nos de outro vigor e repõe o equilíbrio, alinhando as nossas coordenadas mais íntimas com os horizontes da nossa memória.
Posso afirmar que dificilmente haverá cidade, vila, valarejo, no alto cutelo ou no fundo de ribeira, de carro ou a pé, de bote ou de avião, que eu não tenha visitado, nestes últimos sete anos. O mesmo posso dizer sobre a nossa vasta diáspora, em diferentes continentes. Conheço a largueza de todos os sorrisos, o calor e o aperto de todos os abraços, as lágrimas de todos os olhares, e a fala de todas as nossas gentes.
Conheço esta riqueza que é o nosso crioulo, as suas belas expressões, o seu doce burilar de ideias, suas palavras antigas, mas firmes, sábias e reconfortantes; o uso que da língua materna fazem os nossos homens e mulheres. Registo os seus nomes, trago comigo a sua generosidade e o encanto das suas vozes, dos seus sorrisos, da amizade franca. Ficam-me as palavras que compõem esses momentos, esses pedaços de vida. O afago da nossa língua materna. De um povo feliz sem mácula, que se fez continua a fazer-se, sobretudo, através da língua.
Por tudo isso, aqui também tem sentido instar a que se acelerem os mecanismos e se apurem os instrumentos de realização da Constituição da República.