Volvidos 30 anos de vigência, a Constituição é já, indubitavelmente, um sólido património nacional e um orgulho para a grande Nação Cabo-verdiana, considerou, hoje, o Presidente da República ao presidir a Sessão Solene da Assembleia Nacional que assinalou a efeméride.
O Chefe de Estado destaca a maturidade democrática e cívica incorporada na celebração da Lei Magna que tem guiado o funcionamento do Estado de Direito Democrático e o desenvolvimento do país.
José Maria Neves regozija-se com o ritmo como a Constituição da República está a afirmar-se e a ser assumida pela sociedade, e com os ganhos associados, mas considera que a Lei Fundamental pode ser o farol para mais conquistas.
Nisto Neves defende que é chegado o momento para profundas mudanças e de revolucionar as políticas públicas, com vista a um cumprimento, cada vez maior, da Constituição da República em sectores como a educação, a saúde, a justiça, a língua Cabo-verdiana e o aproveitamento da vasta e vigorosa diáspora.
Veja o discurso, na íntegra, a seguir, e leia-o, também, logo a seguir:
Discurso proferido por S.E. o Presidente da República, Dr. José Maria Neves por ocasião da Sessão Solene Comemorativa do XXX Aniversário da Constituição da República de Cabo Verde
Assembleia Nacional, 11 de Outubro de 2022
Senhor Presidente da Assembleia Nacional,
Senhor Primeiro Ministro
Senhor Presidente do Tribunal Constitucional
Senhor Presidente do Supremo Tribunal de Justiça
Senhores Membros do Governo
Senhoras Deputadas e Senhores Deputados
Senhor Presidente da Câmara Municipal da Praia
Senhores antigos Presidentes da República
Senhores antigos Presidentes da Assembleia Nacional
Senhor Procurador Geral da República
Senhor Presidente do Tribunal de Contas
Senhor Chefe do Estado Maior das Forças Armadas
Senhoras Embaixadoras, Senhores Embaixadores, demais membros do Corpo Diplomático
…
Minhas Senhoras e meus Senhores
Regozijo-me imensamente com esta oportunidade de participar nesta sessão solene que assinala o 30º Aniversário da Constituição da República.
Trata-se, na verdade, de um marco importante e o facto de o podermos celebrar, melhor, o facto de naturalmente o celebrarmos é igualmente um forte sinal da maturidade democrática e cívica reinante em Cabo Verde.
E é precisamente por este ponto que desejo começar. Trinta anos volvidos, a Constituição é já, indubitavelmente, um sólido património de toda a grande Nação cabo-verdiana e um seu motivo de orgulho. Trata-se de uma boa Constituição. Ela é moderna, inspiradora e com uma magnífica densidade de valores, princípios e regras que guiaram, têm guiado todo o processo de instalação e consolidação do Estado de Direito Democrático em Cabo Verde. Desde o ângulo estritamente institucional, tem permitido a governabilidade do país, na verdade a estabilidade governativa, e, num plano mais amplo, viabiliza, enquadra e sustenta o pleno funcionamento da Democracia.
Vivemos num Estado constitucional! Isto é inegável e é uma das marcas mais distintivas deste Cabo Verde de que todos nos orgulhamos.
O processo constitucional de há trinta anos foi complexo e historicamente transformador. Abriu um novo capítulo na História do nosso país. História política e institucional, mas igualmente história social, económica e cultural, pois que a Lei Fundamental de 1992 tem sido a régua das réguas deste e neste caminho bem-sucedido de construção e fortificação da Democracia e do Estado de Direito cabo-verdianos.
Honra-me imenso render a minha homenagem às Mulheres e aos Homens que assumiram então as vestes de Constituintes e protagonizaram esse momento grande da nossa História. Cumpriram, cumpriram muito bem, e abriram caminho a que Cabo Verde pudesse cumprir plenamente a sua antiga, profunda, enraizada ânsia de Liberdade e progresso. Com efeito, temos vindo a cumprir; é fundamental que continuemos a cumprir.
Hoje, todos nos congratulamos, por exemplo, com a forma como as nossas ilhas se destacam nos rankings internacionais relativos à avaliação da Democracia e ao desempenho do Estado de Direito à escala africana e global. São ganhos que decorrem dessa aposta nacional na Democracia e na Constituição democrática como alma e limite.
Tem sido, repito, um caminho bem-sucedido para a Nação cabo-verdiana no seu todo.
E é importante reconhecer e enaltecer a forma e o ritmo como a Constituição da República está a afirmar-se enquanto uma verdadeira instituição, pertença de todos e de todas, ao alcance de todos e de todas, seu parâmetro, seu amparo também. A invocação da Lei Fundamental pelos cidadãos e cidadãs e por todos os sectores da sociedade está, com efeito, a tornar-se um hábito, ou seja, e pedindo por empréstimo o raciocínio de Bobbio, a percorrer os territórios da irreversibilidade.
E tem de ser assim. A Constituição não é nem nunca poderá ser o ponto de chegada. Temos de aprofundar este processo da sua assunção social, criar as condições para que ela seja sempre uma Constituição viva, visceralmente avessa ao positivismo do autocontentamento, antes funcione a tempo inteiro como o farol para mais conquistas, o fermento de um constante estado de inquietação e demanda de novas aberturas para os sinais dos tempos e para as dinâmicas portadoras de progresso.
Nesta nossa sociedade democrática é reconfortante a existência da Academia e de espaços de debate e intervenção crítica. Dão conta do quanto temos avançado enquanto sociedade democrática. Temos de saber escutar o seu contributo para a vivificação da reflexão sobre como empurrar cada vez mais além as fronteiras da Cultura da Constituição e sobre como equacionar e albergar problemáticas e desafios sequer suspeitados há trinta anos. É próprio da sociedade democrática e do Estado democrático alçar-se a patamares sempre mais elevados, estar aberto aos avanços científicos, tecnológicos e outros, propor e propor-se novas ousadias.
Senhor Presidente da Assembleia Nacional,
Vivemos, à escala planetária, tempos complexos e de extrema imprevisibilidade. Tempos voláteis, mesmo. O mundo está num acelerado e profundo processo de transfiguração. Antevê-se uma nova ordem mundial. É essencial perceber e preparar-se.
Uma das marcas destes nossos dias é a chamada infocracia e a forma desabrida, porventura até implacável, como atua nas sociedades, na vida das pessoas, influenciando os seus modos de estar, de agir e, maxime, a sua capacidade de escolha.
Os desdobramentos são mais preocupantes ou mais desafiadores em Estados pequenos, com frágeis capacidades de análise e contextualização, periféricos relativamente aos centros de definição de conteúdos e de formatação, e onde as influências chegam pelas vias mais subtis e inesperadas.
As sociedades, todas elas, estão cada vez mais complexas, vivendo desafios que se renovam e se sucedem em ritmo vertiginoso. Verifica-se uma forte erosão dos órgãos ou instâncias de intermediação social. Mesmo a Academia, mesmo as Igrejas. Os Partidos Políticos, evidentemente. É galopante a abertura de espaços a movimentos iliberais ou mesmo antidemocráticos, perante uma confrangedora inépcia de forças e instituições de larga tradição. Aprofunda-se a desconfiança dos cidadãos quanto à capacidade ou ânimo do Estado para resolver os problemas. Não raro vê-se o risco das respostas simplistas, com o potencial de agudização dos problemas.
O que fazer?
É fundamental refletir sobre toda esta situação a que o mundo chegou. Refletir desde logo sobre as instituições, a começar pela Constituição. Urge perceber e escalada de desencanto e frustrações. O que é que falhou? Onde é que errámos? Onde é que Estados falham na resposta aos direitos e às expectativas dos seus cidadãos? Neste mundo globalizado, tanto os avanços quanto as falhas e retrocessos são interdependentes. Pelo que se revela essencial estar atento à arrogância que persiste. Ao invés da modéstia para avaliar e corrigir, verifica-se a pressa em fabricar soluções e propô-las como modelos.
Na reflexão que se impõe, é fundamental um genuíno reengajamento com os espaços multilaterais, as instâncias privilegiadas da governança global. É urgente devolver sanidade às relações internacionais, um sentido de legalidade e de escrupuloso respeito pelos valores e pelas normas. É preciso que nos reencontremos na confiança mútua, no respeito uns pelos outros, na estabilidade e previsibilidade que são garantia de todos, dos grandes e sobretudo dos pequenos que nem Cabo Verde.
Falo, por conseguinte, de reflexão serena e com desprendimento. Com sentido de futuro, esse bem inestimável que temos a obrigação de entregar às gerações vindouras que no-lo concederam por empréstimo, como ensina a sabedoria africana.
Senhor Presidente da Assembleia Nacional,
Nestes quase 50 anos de Independência Nacional, cumprimos globalmente. Distanciámo-nos folgadamente do ponto de partida. Somos hoje um país de rendimento médio. Equacionámos e resolvemos porventura o essencial dos problemas básicos da população. Outros problemas e desafios têm surgido neste processo de busca e construção do desenvolvimento. Aqui e acolá verifica-se retrocessos. A irreversibilidade não é um dado generalizado.
Penso que a celebração dos 30 Anos da Constituição é contexto mais do que oportuno e apropriado para percebermos que é chegado o tempo para profundas mudanças.
Tenho-o dito e repito-o agora: fizemos razoavelmente bem o que tínhamos a fazer. Mas não podemos continuar a fazer da mesmíssima forma. Não podemos persistir na gestão do status quo, na gestão corrente do que já temos e de pequenos e eventuais passos em frente. Nessa linha, o risco de perdas ou de regressão é real. Muito pelo contrário, temos de ousar. Temos de revolucionar na formulação das políticas públicas e sua execução. O nexo de coerência e verdade na defesa e promoção do interesse público nacional tem de nos levar, enquanto Nação, o mais longe quanto possível na procura dos melhores sujeitos e das melhores ferramentas para gerir as políticas públicas.
Pensemos, por exemplo, no caso da Saúde. Será que estamos a cumprir a Constituição, neste domínio?
E a resposta que busco sequer poderá ser dada de forma rápida sob a válvula da chamada realização progressiva dos Direitos Económicos, Sociais e Culturais. O problema é ligeiramente outro. Já fizemos fortes e indesmentíveis investimentos em infraestruturas e equipamentos especializados. Já investimos em recursos humanos. Já alargámos a rede de cobertura sanitária. Tudo isso junto não chega, não tem chegado para responder aos níveis de expectativa e exigência legitimamente existentes na sociedade. Temos de avaliar o funcionamento dos serviços e a eficácia dos resultados. Temos de nos preocupar com a qualidade. Temos de assegurar um nível mais elevado nas respostas em matéria de Saúde. Ou seja, com os investimentos já feitos, está ao nosso alcance fazer mais e melhor.
O mesmo grau de preocupação aplica-se ao domínio da Educação.
Temos de ter a coragem de avaliar a eficiência dos investimentos feitos. Indagar se estamos a assegurar o supremo índice da Educação que é o da qualidade. Neste nosso pequeno país, arquipelágico ainda por cima, boas escolas convivem com escolas não ou exiguamente equipadas. Temos alunos que concluem o ciclo básico sem saber ler. Urge perguntar: até onde é que as assimetrias estão a minar a qualidade do Ensino? Em que extensão é que a não garantia de qualidade da Educação para todos compromete ou afronta o Principio da Igualdade consagrado no artigo 24º da Constituição.
Mas mais: até quando adiaremos a criação de consensos fundamentais, consensos da República!, sobre matérias deste jaez que têm que ver não apenas com a realização da Constituição quanto igualmente com a garantia do nosso futuro enquanto comunidade nacional?
E desejo da mesma forma referir-me à nossa Diáspora, melhor ainda, à nossa condição de país de Migrantes. Sempre o fomos, continuamos a sê-lo. Historicamente, fomos sendo obrigados a buscar condições de vida em longínquas paragens. Na verdade, as secas e a fome exerceram na nossa vida coletiva uma violência extrema, moldando o nosso destino. Fomos forçados a partir. Na Literatura consagrou-se a expressão ‘evasão’. Naturalmente a Constituição da República incorpora a nossa dimensão diaspórica e, no âmbito das Tarefas do Estado, estabelece injunções muito precisas. Mas não apenas sob esse ângulo. Do dispositivo constitucional relativo à universalidade dos direitos, liberdades e garantias (Artigo 23º), recordemos o seu número 2: ‘Os cidadãos cabo-verdianos que residam ou se encontrem no estrangeiro gozam dos direitos, liberdades e garantias e estão sujeitos aos deveres constitucionalmente consagrados que não sejam incompatíveis com a sua ausência do território nacional.’
Temos de poder perceber e assim resolver tudo quanto ainda impeça a plena realização dessa que é afinal, uma enorme riqueza da Nação: a sua condição de pequeno Estado com uma extraordinária Diáspora. Por que razão as competências dos nossos irmãos e das nossas irmãs emigrantes, especialistas em diferentes áreas do saber, ainda não influem decisivamente para a garantia da qualidade, por exemplo, do nosso sistema de Ensino ou para a modernização das prestações de serviço no domínio da Saúde? O que é que nos impede de avançar? Por que razão hesitamos em construir uma relação ousada, inovadora, porventura única de um pequeno Estado insular com uma Diáspora imensamente pujante e credibilizada por esse mundo afora?
Mas podemos dizê-lo de modo afirmativo: a realização da Constituição no atinente à garantia do desenvolvimento para todos e todas passa, necessariamente, pela construção de uma nova e ousada relação com a nossa Diáspora.
E devo referir-me a uma dimensão que resulta dos desafios do mundo dos nossos dias. Um mundo globalizado, um mundo plano, como já se defendeu, feito de fronteiras porosas. As pessoas persistem na sua liberdade de ir e vir, de trabalhar onde lhes seja mais favorável ou apenas possível. Valem-se da sua condição de cidadãos do mundo. Apesar de todas as restrições em determinadas latitudes, com motivações racistas e xenófobas, a verdade é que existe um movimento irreprimível que se reclama da liberdade de circulação e estabelecimento.
Neste nosso arquipélago de Migrantes, tradicionalmente cosmopolita, temos de perceber os sinais dos tempos. Mas temos sobretudo de perceber os problemas que persistem aqui no nosso espaço e agir sobre eles. Para os nossos jovens, a procura de um modo de vida num outro país tem de ser por opção. Não por que as oportunidades não existam ou, muito menos ainda, por perda de esperança no país. Ou seja, também deste ponto de vista, é fundamental indagar se estamos a cumprir a Constituição.
Senhor Presidente da Assembleia Nacional,
Claramente não estamos a cumprir a Constituição no atinente à Língua Cabo-Verdiana. Ela é a coluna vertebral da nossa identidade nacional, é o elo de união neste nosso Cabo Verde transterritorial, goza de uma indesmentível e crescente pujança na sociedade, no mundo oral, é evidente, e, cada vez mais, no da escrita, vive e renasce todas as manhãs nas nossas manifestações culturais, da Música às artes cénicas, todavia persistimos, enquanto poderes públicos, por ação ou omissão, nesta afronta aos Direitos Linguísticos desta Nação Crioula que, na verdade, deu a Crioulidade ao Mundo. Algo não está bem, convenhamos. Algo precisa ser corrigido. Acaso não serão suficientemente precisos os comandos constitucionais específicos à matéria? Refiro-me ao Artigo 7º, alínea i) e ao Artigo 9º.
Como quer que seja, o Estado de Cabo Verde tem de, melhor cedo que tarde, compaginar-se como o Estado de uma Nação Crioula, assumindo as consequências de uma verticalidade e de uma determinação de agir que serão, antes de mais, homenagens diretas ao que nos é de mais radical, no rigoroso sentido da expressão, enquanto Povo.
Senhor Presidente da Assembleia Nacional,
Desejo igualmente acercar-me da Constituição pelo caminho da proibição de discriminação. Quem quer que ajuíze com serenidade e sentido crítico não poderá desconhecer o sentimento de injustiça ou de deficiente cumprimento que tem angustiado os cidadãos relativamente a determinados bens constitucionalmente salvaguardados. O acesso à Justiça e sua realização em tempo útil, por exemplo, mas igualmente o direito a não ser discriminado no acesso e exercício de cargos na Administração, bem como à prestação de serviços por esta. Falta-nos a determinação política e social necessária para erradicar a chamada partidarização na máquina do Estado globalmente considerado, mas também na sociedade.
Temos de continuar a trabalhar para que tal aconteça, impondo de alto a baixo um dever de coerência entre o proclamado e o praticado. Urge cumprir a Constituição, também neste particular.
Por outro lado, e julgo que todos o sabemos, existe um longo caminho a percorrer no concernente aos Direitos Económicos, Sociais e Culturais. A sua alargada realização depende da criação de condições favoráveis, a começar em termos de crescimento económico inclusivo. Mas temos de perseverar na busca de um nível pelo menos equivalente ao que já temos em matéria de realização do catálogo constitucional de Direitos, Liberdades e Garantias políticos.
O que equivale a ter bem identificado o nosso grande desígnio nacional. O Desenvolvimento! Precisamos, todos e todas, abraçar a Cultura do Desenvolvimento. Cada um e cada uma no seu posto de trabalho, na sua trincheira de realização pessoal e profissional. Temos de desejar o Desenvolvimento e agir em consequência, produzindo, produzindo cada vez mais e melhor, sendo escrupuloso em matéria de qualidade e rigor, competindo com os melhores, criando fatores de riqueza nacional, mas igualmente poupando, combatendo os desperdícios e os gastos dispensáveis.
A maior homenagem que podemos prestar a esta Constituição jovem de trinta anos e ao constitucionalismo cabo-verdiano é erguermos, de forma genuína e determinada, um novo Pacto entre as forças politicas, entre as sociedades civil e política sobre os caminhos que nos levarão ao Desenvolvimento. Um pacto que galvanize a Nação e nos coloque a todos e a todas, ombro a ombro, na construção de um Cabo Verde com um nível e qualidade de Desenvolvimento que viabilize e sustente a realização plena da Lei Magna.
Está ao nosso alcance!
Muito obrigado.