Discurso de Sua Excia. o PR José Maria Neves por ocasião da abertura da IV Conferência Internacional sobre Literatura e Culturas Africanas, Ibero-americanas e Caribenhas

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A Desigualdade é Corrosiva e Constitui um Grande Risco para a Humanidade

As minhas primeiras palavras são para cumprimentar todos os presentes e expressar à Universidade de Santiago e ao Senhor Doutor Hilarino da Luz, que foi com imenso prazer que aceitei o honroso convite para presidir à cerimónia de abertura desta IV Conferência Internacional sobre Literaturas e Culturas Africanas, Ibero-americanas e Caribenhas.

Não imaginam a minha satisfação ao ouvir falar desta conferência. Eu sou cabo-verdiano, africano, descendente de africanos e europeus ibéricos, estudei num país latino-americano, e convivi muito de perto com professores, com políticos, com governantes das Caraíbas. Então pude identificar a enorme riqueza desse espaço onde não há fronteiras. Pelo contrário, há muitos espaços de contatos e esta conferência reabre-nos a possibilidade dessa reconexão. Estamos a reconectar-nos, a buscar as raízes para podermos construir novas possibilidades de futuro, daí a minha satisfação.

Aproveito este ensejo para também felicitar esta Universidade que, desde há quinze anos, está instalada no coração de Santiago Norte. E realçar a curiosidade de Santa Catarina, que empresta o nome ao município, ser reconhecida como portadora de notável sabedoria, sendo a protetora dos intelectuais.

As minhas felicitações por terem trazido esta IV Conferência Internacional para Cabo Verde, especialmente para a Universidade de Santiago. Será uma excelente oportunidade para enaltecer e realçar a pujança das Literaturas e Culturas Africanas, Ibero-americanas e Caribenhas, que gozam de um reconhecimento mundial, que pode ser aferido pelos prémios, incluindo o Nobel, que têm acumulado ao longo do tempo. Todos nós somos rendidos à Literatura e à música dos países aqui representados, que são de uma qualidade ímpar. Eu costumo dizer que é nesse espaço que nós encontramos os apóstolos da música mundial.

No nosso caso, Cabo Verde é, acima de tudo, Cultura – nova e nascida do encontro de vários mundos. São homens e mulheres que moldaram a alma crioula, pela literatura, pela música, pela dança, pelas artes plásticas e por outras manifestações que constituem o nosso maior tesouro, numa argamassa que liga a Nação cabo-verdiana, dos residentes aos da diáspora. Tudo, através de um registo único e original, e que temos a obrigação de preservar na sua singularidade e autenticidade.

Uma Cultura que, pela sua especificidade, moldou a nossa identidade e alimentou a resistência, e a ânsia pela independência e liberdade. Mesmo escamoteada, desprezada ou mergulhada na clandestinidade, teve forças para sobreviver à repressão, tendo principalmente as mulheres como guardiãs e transmissoras. De salientar que no ano de 1900, Eugénio Tavares já ousara defender a África para os africanos, num dos primeiros apelos inequívocos à independência de Cabo Verde. Na mesma senda estiveram as gerações seguintes de literatos, de Claridade, Certeza e Seló. A música transforma-se na banda sonora, dos dramas da fome e da emigração forçada; do posicionamento na Segunda Guerra Mundial às músicas de intervenção e da nossa vivência quotidiana.

Porém, a língua cabo-verdiana merece um especial destaque. A maior invenção, a nossa língua materna pode ser considerada como a primeira pedra do edifício da cabo-verdianidade. Todos os esforços devem ser feitos no sentido de conferir toda a dignidade que esta língua nacional merece, criando amplas condições para que seja língua de ensino, com base em experiências muito bem conseguidas, tanto em Cabo Verde como no estrangeiro. Urge ouvir os especialistas com atenção e dar os passos que se mostrarem necessários com vista à sua plena oficialização.

Vale a pena conhecer as nossas línguas, a nossa literatura, a nossa cultura, o nosso percurso histórico, enquanto explicadores do presente e fermentos do futuro que estamos a construir. Que esta Conferência nos permita conhecer melhor este mundo que nos rodeia e nos dê subsídios para desenharmos com mais propriedade os cenários do devir.

Esta IV Conferência Internacional sobre Literaturas e Culturas Africanas, Ibero-americanas e Caribenhas, pela transversalidade dos temas em debate, é uma boa ocasião para também refletirmos sobre outros desafios do Sul Global, e do nosso continente, em particular. Constatamos que para a maioria, a ascensão à independência política não foi sinónimo de desenvolvimento humano, e que se tem acentuado a desigualdade entre o Sul Global – fornecedor de matérias primas e subdesenvolvido – e o Norte, industrializado e desenvolvido. Ou seja, os termos de troca deterioram-se de forma inexorável, pauperizando ainda mais, principalmente o continente africano. Note-se que o sistema financeiro está programado para reproduzir a ordem atual, ou seja, as assimetrias e as desigualdades do presente, pelo que, uma profunda mudança neste sistema financeiro se tornar incontornável.

Temos uma ordem mundial em acelerada reconfiguração. A globalização tem beneficiado essencialmente os mais ricos e os mais desenvolvidos. Os países do chamado Sul Global têm sido os grandes perdedores – aumentando o fosso entre ricos e pobres –, enquanto se começa a esboçar um mundo multipolar, mas de geografia ainda não completamente definida. Um aviso à navegação se faz necessário: a desigualdade é corrosiva e constitui um grande risco para a humanidade. Os ressentimentos; a continuada extração dos recursos do Sul; a ocorrência continuada de situações geradoras de violência, ódio e vingança; as migrações para áreas mais desenvolvidas e mais ricas – que leva ao cosmopolitismo de gueto – não podem ser considerados bons prenúncios.

Lamentavelmente, nos dias de hoje, tanto os governos de direita como os de esquerda, não têm conseguido responder, de forma satisfatória, aos desafios das sociedades civis e dos cidadãos. A democracia está sob forte ameaça, mesmo nos países mais desenvolvidos e com democracias mais consolidadas, principalmente pelo recrudescimento de regimes autoritários e de extrema direita. Nas nossas latitudes, onde os conflitos atuais são muitas vezes esquecidos e não entram na pauta mediática, registamos Estados falhados, ocorrência frequente de golpes de Estado, crescimento de movimentos terroristas, violência de todo o tipo … As questões históricas que não foram resolvidas, mas apenas empurradas para debaixo do tapete, têm provocado a exacerbação de conflitos, um pouco por todo o lado, desde guerras entre Estados, guerras civis ou massacres de populações civis indefesas, beirando o genocídio. Com efeito, assistimos a um mundo em ebulição, num processo de reconfiguração da ordem mundial. Uma nova ordem se torna urgente, que seja muito melhor e mais humana, para que as pessoas possam viver com mais dignidade, paz e esperança.

Estou convencido de que o investimento na educação pode revelar-se um motor de mudanças mais radicais e profundas do tecido económico e social no Sul Global, com destaque para a África. É preciso investir, de forma transformadora, na educação, na ciência e na inovação, para termos lideranças novas e visionárias, catalisadoras desses novos momentos.

Reitero que, em qualquer país, a educação assume uma importância capital para a transformação social, económica e política. Acredito no despertar do Sul Global e no surgimento de novas possibilidades, aproveitando e mobilizando capacidades e talentos, sem descurar todas as potencialidades da sua imensa diáspora. É preciso mobilizar recursos materiais e conhecimentos, e que os países mais ricos do Sul Global funcionem como locomotiva através de investimento de recursos para impulsionar o desenvolvimento dos demais, daqueles que hoje experimentam maiores desafios no seu processo de crescimento.

A experiência de Cabo Verde, depois da independência, com a democratização do ensino, trouxe vantagens evidentes. A educação foi alargada e funcionou como um elevador social e um fator essencial de transformação do país. Trata-se de um investimento que gera retorno. Um passo importante foi dado com a introdução do ensino superior. Agora há que investir na qualidade, na ciência e na investigação em geral. Aproveito para destacar e valorizar o papel da Universidade de Santiago, instalada numa região debilitada, do ponto de vista social e económico, e que tem contribuído para novas dinâmicas culturais e económicas. Quinze anos depois, revela-se um projeto vencedor, que valeu a pena, e que merece ser acarinhado, pois tem formado excelentes quadros para o país.

Para concluir, os meus votos são no sentido de que os trabalhos sejam muito proveitosos, e quando se trata de académicos e homens e mulheres de Cultura, tudo fica muito mais facilitado. Declaro aberta a IV Conferência Internacional sobre Literaturas e Culturas Africanas, Ibero-americanas e Caribenhas.


Muito Obrigado!