Discurso de Sua Excia. o Presidente da República, José Maria Neves, por ocasião da abertura da XII Conferência do Fórum dos Supremos Tribunais de Justiça dos Países e Territórios de Língua Portuguesa.

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Minhas Senhoras e Meus Senhores

É muito gratificante para mim presidir a esta sessão de abertura da XII Conferência do Fórum dos Supremos Tribunais de Justiça dos Países e Territórios de Língua Portuguesa.

Agradeço, pois, o honroso convite de sua Excelência o Senhor Presidente do Supremo Tribunal de Justiça de Cabo Verde, Dr. Benfeito Mosso Ramos.

Estas ilhas têm sido, desde o seu achamento, um espaço de encontro, de diálogo e de convergências, ainda que marcado, em determinados períodos, por desumanidades, desrespeito e violência.

O importante é que Cabo Verde representa, hoje, a África positiva, de paz, de estabilidade social e política, de inclusividade institucional, que tem a ambição de realizar o sonho da prosperidade económica e da felicidade humana.

Fundamos um Estado de Direito Democrático que funciona. Há separação de poderes, as liberdades civis e políticas são respeitadas, o poder judicial é independente, o poder local é democrático e tem assumido crescentes protagonismos nas dinâmicas de desenvolvimento regional e local.

Nos 50 anos de independência, os cabo-verdianos construíram os alicerces do Estado, realizaram com sucesso a transição para a democracia representativa, cumpriram, em 2015, no essencial, os Objetivos de Desenvolvimento do Milénio (ODMs), tendo o país atingido o nível de rendimento médio, em 2007.

Cabo Verde tem-se destacado nos lugares cimeiros em todos os principais índices globais e africanos nos domínios da democracia e da boa governança.

Nos próximos 50 anos, temos a possibilidade de, aproveitando-se da experiência, do conhecimento e da sabedoria acumulados nos últimos anos, acelerar o passo e fazer muito melhor na realização da prosperidade e na criação de oportunidades partilhadas por todos. 

As ordens regionais e mundial estão em metamorfose. Este tempo de transição tem sido marcado por guerras geoestratégicas, migrações, alterações climáticas, extremismos, populismos e iliberalismo. Estamos no fim de uma era dourada de expansão das liberdades fundamentais, de crescimento económico e de prosperidade, dos países democráticos, industrializados e desenvolvidos do Norte. 

Nos últimos 30/35 anos, iniciou-se um processo lento de desgaste dos sistemas políticos liberais, que, afinal, desde sempre, têm tido profundas tensões e tremendas dificuldades em momentos de crise.

Os termos de intercâmbio político, económico e cultural entre a parte industrializada e desenvolvida do mundo e a outra parte têm-se baseado numa provocadora desigualdade e conduzido a situações de bloqueio e de desesperança no chamado sul global. A globalização, com a deslocalização de empresas para países com mão de obra barata e outros incentivos, designadamente fiscais, provocou desemprego, perda de rendimentos e redução da qualidade de vida nos países mais desenvolvidos. A classe média tem perdido em toda a linha. Veem todos os dias os seus rendimentos e a sua qualidade de vida a deteriorarem-se.

As desigualdades dentro e entre os países têm aumentado grandemente e são corrosivas e desestabilizadoras para os sistemas de governança democrática.

Na verdade, não se vive uma crise da democracia. A democracia é um espaço de divergências e de antagonismos, com possibilidades de entendimentos e de acordos. Apesar de as sociedades estarem cada vez mais polarizadas e dominadas pelo imediatismo e de os entendimentos serem cada vez mais difíceis, os processos democráticos têm funcionado, com mais ou menos dificuldades, em contextos cada vez mais complexos.

A crise que vivenciamos é essencialmente da política e das políticas. O Século XX é o de alargamento das liberdades fundamentais. O mundo tornou-se muito mais igual, em termos dos direitos políticos. Os partidos políticos de esquerda democrática e os de centro direita, que se têm revezado no poder nos países ocidentais, implementaram políticas orientadas para a igualdade de direitos civis e políticos. Os movimentos de esquerda democrática e progressista, nos últimos anos, têm-se concentrado em políticas de igualdade de direitos de grupos minoritários, as chamadas políticas identitárias, que são fraturantes e polarizadores. Todavia, a desigualdade de rendimentos e de riqueza aumenta consideravelmente, corroendo as conquistas da classe média e criando enormes dissonâncias entre os governos, de um lado, e a sociedade civil e os cidadãos, de outro, abrindo caminho a descontentamentos generalizados com a política e os políticos. Esse enorme descontentamento tem provocado crises de governança e criado espaços para a afirmação de movimentos extremistas, iliberais e populistas.

Tais crises vão fermentar mudanças profundas nos sistemas políticos de diferentes países, nos paradigmas de governança e no relacionamento entre os Estados, reconfigurando as ordens regionais e mundial. Só num quadro de reforço do multilateralismo, conseguiremos fazer face aos ingentes reptos que se colocam à humanidade, desde as mudanças climáticas ao terrorismo, passando pelas guerras e pelo nível de desenvolvimento das ciências e das tecnologias.

Estamos nessa fase de transição e que será com certeza dolorosa, exigindo muita inteligência, pragmatismo e sentido do bem comum das lideranças mundiais. Teremos de necessariamente reformar radicalmente o sistema de governança global e a arquitetura financeira internacional, e criar novos termos de intercâmbio no relacionamento entre os continentes e países.

No que se refere à África em especial, as relações de subjugação cultural e económica com as antigas potências colonizadoras mantêm-se, no essencial e com sofisticados mecanismos, no pós-independência. As instituições políticas e económicas são na sua grande maioria extrativas e as promessas da independência de uma vida mais digna estão ainda por cumprir, na maioria dos Estados. Só com lideranças visionárias e transformadoras poderemos construir uma Africa livre, democrática, moderna, próspera e justa, capaz de assumir um papel relevante na arena internacional e contribuir para a mudança dos termos de intercâmbio com os restantes continentes.

Neste mundo em processo de transição, caótico e polarizado e, por isso mesmo, muito complexo, é essencial continuarmos a trabalhar para garantir os direitos fundamentais, expandir os direitos económicos, sociais e culturais e abrir caminhos para mais igualdade de rendimentos e de riquezas.

Neste Século XXI, temos de realizar a divisa da liberdade, igualdade e fraternidade, se queremos um mundo muito melhor para as futuras gerações, baseado no pluralismo de ideias, na discussão entre partes divergentes, na construção de acordos e consensos sobre políticas, na igualdade e respeito mútuo entre os Estados soberanos e na cooperação solidária entre todos os povos do mundo.

Só assim conseguiremos, repito, afrontar os enormes desafios que temos pela frente: as guerras, o terrorismo, as mudanças climáticas e as desigualdades sociais e económicas.

A ciência e a tecnologia, designadamente a inteligência artificial, devem ser colocados ao serviço da paz e do desenvolvimento da humanidade.

As transições caracterizam-se, geralmente, por processos caóticos e conturbados. Nesses contextos, a aposta no reforço das instituições e na autonomia da sociedade civil é essencial para a defesa das liberdades e da democracia.

De entre todas as instituições, os tribunais sobressaem como traves mestras do Estado de Direito Democrático e como garante dos direitos, liberdades e garantias dos cidadãos. Nunca como hoje precisamos tanto de tribunais fortes e independentes capazes de dirimir os conflitos existentes na sociedade.

Na verdade, os cidadãos e as sociedades civis queixam-se da morosidade da justiça e, em alguns casos, das dificuldades de acesso.

Quando se verificam grandes avanços nas ciências e nas tecnologias informacionais, designadamente da inteligência artificial, as pessoas já não entendem o porquê de tanta demora na resolução de determinados litígios e conflitos pelos tribunais.

Aliás, o calcanhar de Aquiles do sistema de justiça, em grande parte do mundo, tem a ver com a morosidade e a perceção por parte da sociedade e dos cidadãos de que a justiça não é igual para todos. Muitos consideram-na excessivamente garantística e formal, perdendo-se em labirintos kafkianos. Há que reafirmar que os processos, para serem justos, devem estar rodeados de todas as garantias e a forma é também, nesses casos, muito importante. Tendo em conta, todavia, que os tribunais constituem a última fortaleza da democracia e das liberdades e a derradeira esperança da sociedade e dos cidadãos, maxime nestes tempos caóticos e polarizados de transição, é essencial que sejam criadas condições para reformas inteligentes e atuais do sistema de modo a garantir-lhe celeridade, qualidade e eficácia, adequando-o aos contextos e às exigências da atualidade.

É claro que o crescimento inclusivo e ambientalmente sustentável depende em grande medida de politicas públicas efetivas das autoridades governamentais a todos os níveis. 

Mas se os tribunais forem eficientes na execução e eficazes nos resultados, teremos com certeza mais paz e instituições políticas e económicas mais inclusivas, garantindo um desenvolvimento geral mais sustentável.

De aí a importância desta XII Conferência, que se realiza precisamente sob o signo da “Eficiência dos Tribunais, Sociedades Pacificas e Inclusivas e Desenvolvimento Sustentável”. Este é um importante espaço de reflexão, de troca de experiências, de partilha de conhecimentos sobre como enfrentar com sucesso os desafios que se nos colocam, particularmente no campo da justiça. 

Desejo-vos uma boa estadia nestas terras da morabeza, e que os debates sejam enriquecedores para os nossos sistemas judiciais.

Declaro aberta a XII Conferencia do Fórum dos Supremos Tribunais de Justiça dos Países e Territórios de Língua Portuguesa.

Muito obrigado.