Discurso de Sua Excelência o Presidente da República de Cabo Verde, Senhor José Maria Pereira Neves, na Abertura do Ano Judicial 2025 do Tribunal Africano dos Direitos do Homem e dos Povos

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Minhas Senhoras e meus Senhores,Começo por manifestar os meus mais profundos agradecimentos à Veneranda Juíza Imani D. Aboud, Presidente do Tribunal Africano dos Direitos do Homem e dos Povos, pelo honroso convite para proferir o Discurso de Abertura deste Ano Judicial.

Este momento reveste-se de um significado singular, pois nos convoca à reflexão sobre a justiça e o papel das reparações no continente africano, questões inextricavelmente ligadas à nossa história, dignidade e futuro comum.

Permitam-me saudar este ilustre Tribunal pela escolha do tema “Promovendo a Justiça Através de Reparações”, em harmonia com o tema da União Africana para este ano: “Justiça para os Africanos e as Pessoas de Ascendência Africana através de Reparações”. Tal abordagem representa um reconhecimento inequívoco da necessidade de enfrentar, com coragem e determinação, as injustiças históricas que marcaram o nosso continente.

A questão das reparações transcende a mera compensação material. Insere-se numa perspetiva holística, que abrange os alicerces essenciais da saúde, educação e cultura, pilares imprescindíveis para a cura das feridas do passado e para a edificação de um futuro de equidade e prosperidade.

É com profundo respeito e um sentido de responsabilidade histórica que tomo a palavra perante vós para refletir sobre os conflitos em África e a premente necessidade de reparações.

Este continente, berço da humanidade, carrega ainda as cicatrizes de múltiplos flagelos – guerras fratricidas, divisões étnicas instrumentalizadas, incluindo o sistema do apartheid, injustiças criadas, impostas e perpetuadas – que não só marcaram o seu passado, mas continuam a comprometer o seu presente e o seu futuro.

As consequências dos conflitos que atravessaram o nosso continente – e que, infelizmente, persistem em várias regiões, como o Sudão, as fronteiras da República do Congo ou o Sahel – não se limitam à destruição física. Estas guerras desenraízam comunidades, desmantelam estruturas sociais, económicas e políticas, e geram traumas intergeracionais que se perpetuam no tempo.

Penso nas crianças que foram privadas da sua infância e do direito à educação, nas mulheres que enfrentaram violências indescritíveis, nas aldeias devastadas e nas culturas desvalorizadas ou obliteradas.

Estas feridas, visíveis e invisíveis, exigem de nós uma resposta que vá além da retórica: exigem reparações efetivas.

Na questão dos conflitos e das reparações, não se trata apenas de política, de diplomacia ou de números, mas de vidas humanas, de dores inenarráveis e de dignidade a serem restauradas.

Não basta reconstruir estradas, reerguer casas ou oferecer indemnizações materiais. É preciso ir além. É necessário investir naquilo que constitui o verdadeiro alicerce de um futuro sustentável.

Reparar é um ato que deve abranger todas as dimensões do ser humano e das suas comunidades, constituindo-se num processo holístico que assente na restauração da dignidade e na promoção de um desenvolvimento verdadeiramente inclusivo.

Nos momentos em que os conflitos eclodem, as escolas são frequentemente as primeiras a fechar as suas portas. As crianças, privadas do direito à educação, tornam-se reféns da guerra, testemunhas da perda e vítimas da pobreza. A violência que as cerca rouba-lhes a infância, condenando-as a uma existência onde os sonhos são substituídos pelo medo e pela incerteza.

Ao negligenciarmos a reparação dos sistemas educativos destruídos, perpetuamos um ciclo vicioso de conflitos e marginalização, comprometendo não apenas o presente, mas também o futuro destas gerações.

A educação transcende a condição de direito fundamental; ela é uma arma poderosa contra a ignorância, a discórdia e a violência. Onde os conflitos semeiam medo e ódio, a educação tem o dom de cultivar a compreensão, a unidade e a esperança.

Mais do que isso, a educação é um instrumento primordial para reconciliar comunidades outrora divididas. Dentro de uma sala de aula, não há lugar para distinções de etnia ou religião – há apenas alunos, crianças com sonhos por realizar e esperanças por alimentar.Cada livro que se abre, cada conceito que se aprende, representa uma vitória em direção à compreensão, à união e à esperança.Reparar através da educação é, verdadeiramente, investir no futuro.

Este processo implica não apenas a reconstrução das escolas destruídas, mas também a formação de professores devidamente qualificados, capazes de transmitir muito mais do que conhecimento académico. Estes professores devem ser portadores de valores universais – ensinar a paz, a tolerância, a história partilhada dos nossos povos e a riqueza inestimável da nossa diversidade cultural.

No entanto, a educação, por si só, não basta para curar todas as feridas deixadas pelos conflitos. Para que a transformação seja integral e duradoura, é necessário complementar este esforço com um olhar atento para aquilo que constitui a essência e a alma do nosso continente: a sua cultura.

Se a educação é o alicerce para a construção de sociedades coesas, a cultura é o fogo que mantém viva a identidade e a memória coletiva, garantindo que nenhum povo se perca no esquecimento.

Gostaria, pois, de vos falar sobre este tesouro imaterial que transcende gerações – a cultura africana, as suas tradições e o seu legado vivo. Se a educação é o pilar da reconstrução material e intelectual, a cultura é o fogo sagrado que preserva a identidade, a memória e a alma de um povo.

É, ao mesmo tempo, o reflexo da resiliência de África e a chave para a sua verdadeira emancipação. A África é, inegavelmente, um continente de histórias, de canções, de danças e de símbolos que moldaram a sua identidade ao longo de milénios.

No entanto, os conflitos e as injustiças históricas feriram profundamente este património. Locais sagrados foram saqueados, línguas silenciadas e saberes ancestrais relegados ao esquecimento.

Apesar disso, a cultura africana resiste. Tal como as brasas que permanecem acesas sob as cinzas, a cultura continua a arder, pronta para reacender a chama da reconciliação e do renascimento. Ao redor das fogueiras, as histórias contadas ensinam a força da união; nas danças, mesmo nos momentos mais sombrios, celebra-se a vida; e nos gestos dos artesãos, recriam-se objetos que carregam a memória e a identidade de um povo. Valorizar estas expressões culturais é muito mais do que reparar o que foi destruído; é restituir humanidade ao que foi desumanizado.

A cultura, tal como a educação, é uma ponte poderosa entre gerações. Une passado, presente e futuro, transmitindo às crianças e jovens não só o conhecimento dos seus ancestrais, mas também a confiança para preservarem e expandirem este legado.

Integrar a música, a literatura, as artes e os saberes locais no processo de reparação é dizer aos nossos filhos: “O vosso legado é uma força inigualável. Cabe-vos preservá-lo e fazê-lo prosperar. ”Mais do que isso, a cultura é um caminho de reconciliação. Ela tem o poder de unir comunidades outrora divididas, permitindo que se reencontrem em torno de símbolos partilhados, canções comuns e rituais coletivos. Através da valorização cultural, transcendemos as feridas do passado e lançamos as bases para uma paz duradoura.

É, pois, imperativo colocar a cultura no cerne das políticas de reparação. Isto implica apoiar os artistas, preservar os sítios históricos, reconstruir os museus e incentivar a criação contemporânea.

Significa também devolver os bens culturais ilicitamente retirados do continente e celebrar a diversidade cultural de África como uma riqueza, nunca como uma causa de divisão.Reparar através da cultura é muito mais do que reerguer edifícios ou compensar perdas materiais. É revitalizar línguas ameaçadas, recuperar tradições esquecidas e transmitir às gerações futuras o orgulho de um património único. É reafirmar, perante cada africano e o mundo, que a cultura é a alma de um povo e que, sem ela, não pode haver renascimento autêntico.

Enquanto “Champion” da União Africana para a Preservação do Património Natural e Cultural do Continente, assumo, neste ano de 2025, o compromisso de acolher uma Cimeira da Crioulidade. A partir do sítio histórico de Cabo Verde – a Cidade Velha –, património mundial da UNESCO, partilharemos com o mundo o contributo africano para a humanização do Atlântico.

Foi neste território, marcado pelo tráfico de escravos, que o saber africano – nas áreas da agricultura, medicina e espiritualidade – se disseminou, tornando-se uma base de resistência e resiliência para os povos subjugados.

Foi neste espaço que se concretizou o diálogo entre culturas e povos, dando origem a novas línguas, novas vivências e novas identidades.

Nesta Cimeira queremos transmitir uma mensagem de paz, de amizade social, de possibilidades de encontro, de diálogo e de cooperação entre nações. Na verdade, queremos dizer ao mundo que só com o desenvolvimento e a prosperidade, podemos resgatar a dignidade e reparar as injustiças e as inimizades.

Reparar através da cultura é devolver à África a sua humanidade. É garantir que os tambores da paz ressoem mais alto do que as trombetas da guerra. É construir um futuro onde as expressões culturais de África inspirem o mundo e onde cada africano possa orgulhar-se do seu legado. Cabe-nos, enquanto comunidade global, garantir que este compromisso se concretize. Pois, na preservação da nossa cultura, reside a força para transformar a dor em esperança e o passado em um futuro de justiça e resiliência.

Não podemos falar de reparação sem falar de justiça que é o esteio de qualquer sociedade que se pretende digna, harmoniosa e estável. Mais do que a simples aplicação de normas, ela constitui um pilar de civilização, garantindo que os direitos de cada indivíduo sejam respeitados e que as responsabilidades sejam devidamente assumidas.

Sem justiça, os alicerces da confiança nas instituições e do respeito pelo Estado de Direito desmoronam, cedendo lugar à desordem, à insegurança e à perpetuação de desigualdades.Contudo, a justiça não pode limitar-se à punição. Deve assumir-se como um instrumento de reconciliação, reparação e transformação.

É na imparcialidade das decisões judiciais, na acessibilidade dos tribunais e na celeridade da resolução de litígios que se forja a confiança dos cidadãos no sistema. Onde a justiça é silenciada, reina a impunidade, perpetuam-se os ciclos de violência e germina o desespero.Reparar através da justiça é reconhecer o sofrimento das vítimas, restituir-lhes a dignidade violada e assegurar que os crimes não se repitam. É criar um ambiente onde as feridas do passado possam cicatrizar e o futuro seja construído sobre o respeito mútuo e a igualdade de direitos. Pois sem justiça não há paz duradoura, e sem paz, os esforços de desenvolvimento são vãos.

Por outro lado, pouco vale se a reparação não for conducente ao desenvolvimento equitativo, abrangente e sustentável, guiado por uma visão de justiça social e solidariedade intergeracional e internacional.

A história de África está profundamente marcada pelo impacto devastador do tráfico transatlântico de escravos. Durante séculos, milhões de africanos foram brutalmente arrancados das suas terras, despojados das suas liberdades e forçados a alimentar, com o seu suor e sofrimento, as economias de outras nações.

As repercussões deste crime histórico são imensuráveis e continuam a ecoar no presente, perpetuando desigualdades estruturais, marginalização social e feridas ainda por sarar.

Reparar este legado não é uma opção, mas uma obrigação moral, política e social. Como sublinhou a vice-presidente da Comissão da União Africana, Monique Nsanzabaganwa, “a exigência de reparações não é uma tentativa de reescrever a história ou de continuar o ciclo de vitimização. É um apelo para reconhecer a verdade inegável e corrigir os erros que ficaram impunes durante demasiado tempo e que continuam a prosperar atualmente”.

Este reconhecimento é o ponto de partida indispensável para a justiça reparadora, mas não pode ser o seu limite.Reparar significa agir. Não basta recordar os sofrimentos ou lamentar os erros do passado; é necessário traduzir este reconhecimento em iniciativas concretas que promovam o desenvolvimento inclusivo, a educação, a saúde e o fortalecimento das instituições de justiça.

A restituição de bens culturais ilicitamente retirados do continente, o investimento em políticas públicas que enfrentem as desigualdades históricas e o apoio às populações mais vulneráveis devem estar no cerne deste esforço.

Contudo, este processo exige não apenas a solidariedade ativa dos países que beneficiaram do comércio de escravos, mas também a responsabilidade dos próprios africanos em liderar a transformação do seu futuro.

Como continente, África precisa de imprimir uma segunda descolonização – uma descolonização mental que liberte as suas sociedades da dependência das narrativas neocoloniais.Dependemos ainda de histórias que não nos pertencem, de perspetivas que nos subjugam e de sistemas que perpetuam a desigualdade.

Esta nova descolonização deve enfrentar, com coragem, os desafios do presente: os discursos de ódio, as políticas anti emigratórias, o ressurgimento de ideologias xenófobas, racistas e suprematistas, e as perseguições que ameaçam repetir os episódios mais sombrios da história da humanidade.

Em vez de nos resignarmos a uma postura de lamentação, é imperativo colocar África em primeiro lugar, com dignidade. Isso implica que os recursos africanos sejam colocados ao serviço dos africanos, que as instituições regionais, como a União Africana, sejam reformadas e fortalecidas, e que os processos eleitorais sejam normalizados para garantir estabilidade e representatividade.

Os líderes africanos temos a responsabilidade de agir com visão e determinação, promovendo uma nova atitude que valorize a soberania, a boa governação e a mobilização de recursos internos para o desenvolvimento durável e a dignidade da pessoa humana.

A justiça reparadora, por sua vez, deve ser uma prioridade incontornável. Estruturas como o Tribunal Africano dos Direitos Humanos e dos Povos simbolizam o compromisso do continente com a justiça e a reconciliação, mas devem ser plenamente operacionalizadas e dotadas dos recursos necessários para enfrentar as atrocidades do passado e promover a confiança no futuro.

Estou convencido de que a melhor reparação a realizar é esta: a descolonização mental. Sem ela, não será possível transformar o legado de opressão em força coletiva e emancipação.

Como afirmou o antigo Presidente do Gana, Nana Addo Akufo-Addo, “chegou o momento da África – cujos filhos e filhas viram as suas liberdades negadas e foram vendidos como escravos – também receber reparações”.

Este é o momento de ação. Reparar África é assegurar que o sofrimento de gerações passadas se converta em força transformadora. É permitir que cada africano, criança ou adulto, viva num continente que honra o seu passado e avança com determinação rumo ao futuro.

Mas é também um apelo à humanidade: pois na reparação de África reside a possibilidade de um mundo mais justo, mais solidário e mais digno para todos. Ao prosseguirmos, deixemo-nos guiar pelos princípios do ubuntu – a crença num laço universal de partilha que liga toda a humanidade.

Que a nossa busca de justiça seja temperada com sabedoria, que a nossa exigência de responsabilidade seja equilibrada com compaixão e que a nossa visão para o futuro esteja enraizada na força da nossa história partilhada.

Que este ano judicial seja marcado por passos corajosos em direção à justiça. Que as nossas deliberações conduzam a planos de ação que nos aproximem da concretização das reparações.

E que os nossos esforços coletivos contribuam para um futuro em que as injustiças históricas sejam reconhecidas, tratadas e curadas.

Muito obrigado.