Discurso proferido por S.E. o Presidente da República por ocasião da Cerimónia Fúnebre em homenagem da Conselheira da República

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Doutora Helena Lopes da Silva

Lisboa, 11 de Setembro de 2018.

Caros familiares de Helena Lopes da Silva
Exmo. Senhor Presidente da Republica Portuguesa Professor Marcelo Rebelo de Sousa, amigo de todas as horas
Exmo Senhor Embaixador
Minhas senhoras e meus senhores
Prezadas Amigas e Amigos

As minhas primeiras palavras são de solidariedade, de muito pesar e conforto para os familiares da Lena que, de forma trágica, acaba de nos deixar.

Nestes dias tenho vivido um dos momentos mais difíceis da minha vida. Repentina e concretamente a perplexidade do vazio instalou-se e interrompeu uma relação de profunda amizade, de grande respeito e muita cumplicidade, que mantinha com a Dra. Helena Lopes da Silva, forjada ao longo de décadas, durante as quais, testemunhamos e fomos protagonistas de parte de acontecimentos que mudaram o nosso país, mudaram o mundo, mudaram as nossas vidas.
O que parecia o fluir natural de uma relação que nunca terminaria, foi brusca e definitivamente interrompido. Como se todos estivéssemos a soletrar, em permanência, C’est tout, de Marguerite Duras («Não sei se tenho medo da morte, não sei quase nada desde que cheguei ao mar»).

Nesta hora, num esforço que reconheço inglório, busco, desesperadamente, restabelecer esse processo. Refugio-me em palavras, numa ocasião em que o tempo deveria ser preenchido, pelo silêncio que irmana, aglutina, ajuda a aliviar a dor, a refletir na precariedade da vida e a encontrar a via para que a generosidade que a Dra. Helena Lopes da Silva sempre cultivou, continue a florescer.

O silencio que, para além de franquear o diálogo com o divino, permite o encontro com a própria respiração e a dos outros e ajuda a compreender, porque silenciosamente, choramos com o corpo todo, as fragilidades da nossa alma, porque, por vezes, compulsivamente imploramos um abraço e, dolorosamente, assumimos que, afinal, não somos imortais, embora no íntimo acreditássemos que a Helena o fosse.

Falar nessas circunstancias não é tarefa fácil. Os olhos, as lágrimas, o coração, a saudade, a impotência, invadem o nosso ser, toldam a nossa mente, impelem-nos ao silêncio, ou a uma fala que não deve ser muito mais do que o deslizar sonoro do silencio que se esconde nas profundezas de cada alma.
É verdade que esse silêncio também favorece a lembrança, particularmente, de coisas boas, de coisas bonitas, alegres até, especialmente quando referidas a quem pautou a sua vida por um despojamento completo, por quem assumia que, no mundo, a miséria, as desigualdades, a opressão não são uma fatalidade resultante de uma maldição qualquer, por quem viveu a vida, vivificando-a a todo o instante.

A desolação ajuda-nos a reencontrar a jovem, a profissional, a mulher de causas, que desde cedo desfraldou as bandeiras da independência, da liberdade, da justiça e que tinha como uma das características marcantes a capacidade de estabelecer pontes, de construir elos, de juntar pessoas e até povos.

No coração do regime colonial-fascista, Lena aderiu à causa da independência de Cabo Verde e das outras ex-colónias, sem descurar a participação as lutas que os portugueses travavam no seu país. Militou nas estruturas do PAIGC e, na fase final da clandestinidade, integrou comigo um dos órgãos de coordenação da luta independentista.
Esteve na linha da frente da mobilização para a independência, de estudantes e trabalhadores cabo-verdianos e de outras ex-colónias, bem como das lutas antifascistas e pela justiça social que se travavam em Portugal. Simultaneamente tomou parte nos intensos debates que têm sacudido o mundo e desafiado a humanidade.

A partir de Portugal acompanhou permanentemente e apoiou activamente a consolidação do Estado de Cabo Verde, particularmente na sua esfera profissional e, com desassombro, mesmo correndo algum risco em certos períoodos da vida do país, fez-se ouvir sobre as grandes questões que se colocavam ao país e defendeu com coerência os princípios em que sempre acreditou.

Ajudou a conquistar e edificar a democracia em Cabo Verde, teve intensa actividade associativa no seio da comunidade cabo-verdiana em Portugal e, em todas as disputas eleitorais no país, a sua participação foi uma constante de determinação e paixão.
Profissional de alto gabarito sempre conciliou a excelência da sua actuação com a luta política, a promoção cultural, o debate académico e, muito especialmente, com uma infinita disponibilidade para amparar e ajudar todos os que dela necessitavam, em particular os mais desfavorecidos, o que lhe granjeou o respeito, a admiração de todos os que com ela conviveram e a gratidão de muitas centenas, ou mesmo milhares de cidadãos.
Estes perfil e percurso justificaram, plenamente, o convite que lhe formulei, no meu primeiro mandato, para assumir o cargo de membro do Conselho da Republica, que foi exercido com total disponibilidade, muita competência e dedicação, muitas vezes com sacrifício pessoal e familiar.
A atribuição da medalha de segunda classe da Ordem Amilcar Cabral foi a forma que, em 2015, encontrei para exprimir o reconhecimento do povo de Cabo Verde a esta ilustre e muito querida senhora.

Todas as mulheres e todos os homens de Cabo Verde, de Portuga, a sua pátria de adoção, e do mundo, couberam no coração e na mente da Dra. Helena Lopes da Silva, da Lena. Por isso, ainda algo atordoados, indagamos: e agora, como ficamos sem a Pantcholita ? Difícil de conceber.

Na realidade, não se perdeu apenas uma pessoa com uma impressionante capacidade humana e disponibilidade quase ilimitada para se dar….perdemos uma instituição única, de afecto, de alegria, de força, de uma indizível vontade de viver, de tocar, de estar presente, de ajudar, de apoiar, de abraçar, de acolher. Sim como vamos ficar?

Possivelmente, nem terá, nem teremos, como Ezequias, a divina oferta de mais quinze anos para nos confortarmos da insensatez desta morte traiçoeira, sabendo nós que ela, a nossa amiga, seguramente não correria o risco de os desperdiçar com a exibição de seus tesouros aos da Babilónia.
Quiçá, olhando para a face da morte, tesa e ornamentada, ou para a sua imagem luzidia, espelhada em água imóvel e tranquila, descubramos o sentido de Vida, o que é Deus. O rasto vivo dos trilhos da morte, a sua topografia dantesca. A vida e a morte a desaguarem uma na outra porque podemos, enfim, «pensar a morte» e «pensar a vida». O enunciado redentor de Rafael, como no Livro de Tobias. O seu hálito fresco e por vezes altaneiro.

A poesia que nela, submersa, invade e assusta – clandestina e sibilante – os espíritos e a doce e soletrada ambição dos céus. A viagem pelo mundo, suas cousas, pelas formas e pelas cores da morte e da vida.
Essa mesmo, sim, Vida, Maiúscula, traço-de-união de todos os fragmentos, universo do corpo e da alma, donos de todos os silêncios e do Amor, ao jeito de Whitman. A morte com memória de cousas muitas e contumazes: límpido pousio de vaidade soberana e legítima, na cabeça serena de demónios em repouso, solitários, à espera de uma transgressão fatal.
Sim, o mais certo é que fiquemos a deflectir, a cultuar a sua memória, a lembrar-nos das suas gargalhadas, na sua refilona bata branca a cuidar dos outros, das belas tocatinas, das suas lutas, da força de suas convicções, do seu sorriso, que nos ajudarão a superar a dor e a imortalizar o seu exemplo.

Renovo à família e aos amigos, em nome dos cabo-verdianos, os sentimentos de grande pesar pela perda desta ilustre filha de Cabo Verde.

Muito obrigado