Lígia Fonseca, Primeira-Dama: “Quem não consegue cumprir, não deve estar onde está”
A Primeira-Dama Lígia Fonseca falou ao Panorama 3.0, da Rádio Morabeza, sobre o papel da escola na sociedade cabo-verdiana e pediu mudanças na sala de aula. Sobre o desaparecimento de menores, a mãe e advogada exigiu respostas e responsabilização.
O mundo actual apresenta novos desafios às instituições tradicionais das sociedades, nomeadamente a escola. Neste contexto, o que devemos esperar da escola cabo-verdiana?
É na educação que está tudo. É um consenso geral, independentemente dos governos, dos presidentes. Agora, falta um consenso, um pacto de regime, porque estamos a ver que, conforme mudam os governos, mudam os projectos. Acho que os actores políticos, os partidos, não só aqueles que têm assento parlamentar, deveriam encontrar consensos mais alargados e permanentes. Não vale a pena pensar que conseguimos melhorar a economia, a qualidade da nossa democracia, se não investirmos a sério na educação.
Vivemos num mundo de conhecimento.
Vivemos num mundo de conhecimento, num mundo em que o tempo é mais rápido. O que acontece numa hora, na hora seguinte já mudou e nós temos que ter capacidade para acompanhar tudo isto. E temos que olhar para a nossa educação, para o nosso sistema educativo, para as nossas escolas, para os nossos professores e perguntar: “estamos nós a preparar o nosso futuro e a dotar as crianças das ferramentas para conseguirem trabalhar e viver neste novo mundo?” Se entrarmos hoje numa escola, parece a escola em que eu andei, há 40 anos, ou a escola em que os meus pais andaram, há 80 anos, e há qualquer coisa que não me parece que faça sentido, que ainda se continue com os mesmos métodos, quando o mundo já mudou. Tudo muda, menos a sala de aula. Ouvimos a toda a hora que o nosso futuro assenta muito no turismo. É verdade. Que preparação estamos a dar aos nossos jovens para viverem neste mercado que está a crescer? Insistimos nós no ensino das línguas, quando mesmo exprimir em português é uma grande dificuldade? É óptimo falar muito bem o crioulo, mas tenho defendido que temos é de somar, nunca diminuir. Os nossos professores têm que ter formação permanente, actualização para poderem usar as novas ferramentas, computadores, smartphones como instrumentos de trabalho dentro da sala de aula e a sala de aula tem de mudar.
A sala de aula é, cada vez mais, um sítio para transmitir competências.
Era bom que fosse assim, porque é impossível transmitir na escola todo o conhecimento. A boa educação é aquela que orienta e que dá as tais ferramentas para eu conseguir aceder ao conhecimento, que a todo o momento evolui. Há excepções, naturalmente. Eu tenho uma filha de 14 anos, passei a fase do básico e tenho agora acompanhado o ensino secundário, que está com muitas deficiências. Desde logo, o facto de não ter manuais. O não ter manuais até podia ser uma coisa normal, porque hoje o acesso ao conhecimento não tem que ser através de livros escolares, mas em jovens e crianças de 10, 11, 12 anos como é que organizamos a forma de elas perceberam as coisas se não tivermos um livro base que serve de apoio? Isto não é de agora, não é de hoje, não é de há dois, três, quatro anos. Há cerca de uma dezena de anos que andamos sem manuais no secundário.
O que vejo, muitas vezes, é que os alunos têm cadernos e os professores ditam ou projectam no quadro e eles copiam e decoram, decoram, decoram. Completamente errado, não é aceitável. Já não era no meu tempo, muito menos hoje.
Uma das missões da escola é contribuir para a diminuição das diferenças sociais, construindo igualdade de oportunidades. Falava da sua filha e certamente que a família, em casa, compensa as debilidades do sistema, mas nem todas as famílias têm essa capacidade e logo aí estamos a criar desigualdade.
Uma grande desigualdade, sim. A falta de manuais não é um problema para a minha filha, porque ela chega a casa com as matérias e eu sento-me no computador e em cinco minutos tenho acesso a informação adequada ao nível dela. Portanto, se ela não tiver as melhores notas, não é por falta de acesso à informação, antes pela sua própria falta de dedicação. Um colega dela que não tem em casa quem faça este trabalho fica só com o que a professora deu no caderno e logo aqui está a tal desigualdade. Se todos tivessem um manual, o mínimo, o básico, todos sabiam igual. Repare as escolas que surgem por aí, como a Escola Portuguesa, na Praia, que está superlotada. Quem consegue chegar lá? Os pais que têm capacidade financeira para pagar. Eu conheço crianças que estão lá no ensino básico e vejo a diferença de desenvolvimento cognitivo. Têm manuais, uma determinada pedagogia, desenvolvem muito mais. Essas crianças são mais inteligentes? Não. Têm é acesso a oportunidades que nas outras escolas não tinham. Faço a comparação sem nenhum receio de estar enganada, porque a minha filha andou numa escola pública.
E perante estas mudanças, que papel cabe à família? Ou, por outro lado, a família, nas suas múltiplas configurações, soube encontrar o seu papel?
Acho que conseguiu encontrar o seu papel. O que eu digo é que temos que perceber que a influência da família acaba por ser menor face a todas as outras influências que a criança sofre. O tempo que a criança está com a família é hoje muito inferior. Qual é que deve ser, então, o papel da família? Fortalecer a capacidade dos filhos de pensar e de pensar no bem, manterem-se firmes no que acham que está certo e solidificar estas capacidades.
As tais competências.
As tais competências. Hoje em dia, é muito difícil eu dizer que isto é certo, isto é errado. A minha filha quer saber o porquê e isso obriga-me a reflectir nas minhas ideias pré-concebidas.
Crianças desaparecidas
Quando a primeira-dama, pela visibilidade mediática que tem, levanta determinadas questões, ela sabe que as suas declarações terão um impacto e até uma interpretação politica. Porque é que decidiu envolver-se directamente na questão do desaparecimento de crianças, mesmo sabendo que esse posicionamento não seria bem recebido por todos os actores políticos?
Primeiro, porque sou mãe e a maior tranquilidade que uma mãe pode ter é saber que o seu filho não corre perigo, que tem liberdade de circular. Os pais podem deixar os filhos andar por aí à vontade? Isto caracteriza Cabo Verde, esta liberdade que as crianças têm. Os miúdos brincam à vontade e por isso desenvolvem uma maior capacidade de interagir com outras crianças. Quando, de repente, me apercebo que as coisas estão a mudar e não há uma explicação, assustei-me muito. Quando liguei a rádio e ouvi a notícia que mais duas crianças estão desaparecidas, fiquei mesmo transtornada. Isto não é possível, não somos um país grande, isto é uma ilha, temos acesso a tudo, não há zonas isoladas. Então como é que se desaparece assim? Não posso ficar calada. Seria uma irresponsabilidade da minha parte fazer de conta que está tudo bem. Uma das coisas que caracteriza a democracia é o prestar de contas. Todos têm que prestar contas num sistema democrático. As autoridades responsáveis pela segurança têm que prestar contas, têm que nos dizer se há alguma coisa e o que é que está a ser feito. Eu acredito que esteja a ser feita alguma coisa. No dia que eu deixar de acreditar nisto, então não acredito na segurança. Eu acredito nas instituições do país. Eu acredito que não é à toa que somos considerados uma das primeiras democracias. Mas é nisto que nos queremos transformar? Vamos perder uma coisa tão boa que é a tranquilidade de os nossos jovens poderem circular? É isto que nós queremos? Se não é isto que queremos, então temos de assumir esta responsabilidade, sem medo de qualquer conotação política, porque isto não tem qualquer conotação politica. Quem não consegue cumprir com as suas responsabilidades, então, não deve estar onde está. Nós temos, em Cabo Verde que começar a assumir as responsabilidades. Isto de as pessoas dizerem “não conseguiu”, “não foi feito”, “não está certo”. Não conseguiu, não foi feito e eu vou confiar em quem não consegue fazer uma investigação?
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 847 de 21 de Fevereiro de 2018.