Intervenção de S.E. o Presidente da República, Jorge Carlos Fonseca, na conferência, “Em Português nos Entendemos, A Língua Portuguesa Como Activo Estratégico”, no Palácio da Bolsa, cidade do Porto, comemorativa dos 130 Anos do Jornal de Notícias.
Discurso na íntegra:
Excelências,
Ilustres Convidados,
Minhas senhoras e meus senhores.
Depois de no passado mês de Novembro ter estado nesta bela e acolhedora cidade do Porto, por altura da minha segunda visita de Estado a Portugal, a convite do senhor Presidente Marcelo Rebelo de Sousa, é com grande satisfação que me encontro novamente, a seu lado, não para outro simpático pequeno almoço no Café Majestic, mas para esta magnífica conferência que celebra os 130 anos de um dos jornais mais emblemáticos desta cidade e desta região. Cidade e região, como sabemos, de onde a nossa língua começou a aventura para fora dos seus limites portucalenses, na sua caminhada universalista e pluralista, até chegar às nossas ilhas e para dali continuar, ao sabor das vagas. E não podemos deixar de referir, também – sobretudo nós, homens e mulheres, ligados ao ensino das coisas do Direito e das Constituições – a Revolução Liberal de 24 de Agosto, que por estas ruas e praças teve o seu berço, esse pronunciamento militar que representou a primeira tentativa de implantação em Portugal de um regime constitucional, e que, dentro de dois anos, celebra o seu bicentenário.
Evocamos, hoje, os 130 anos de um jornal que vem sendo o eco de uma cidade, espelho da alma da sua população e história privada de uma forma de sentir muito particular.
Assim como outros jornais que se transformaram em verdadeiras instituições nacionais, o Jornal de Notícias tem uma história sólida que o coloca entre os mais importantes periódicos portugueses e o último diário resistente, desta cidade, e porta-voz de um tempo que se nos desprende. Mas disso, estou certo, iremos ouvir falar aqui pela voz daqueles que asseguram, todos os dias, a sua existência. Quero também aqui recordar a minha ligação especial à imprensa, aos jornais, que é de longa data, enquanto cronista e analista político em diversos jornais do meu país, de Macau e outros. Também a importância e o papel fundamental da imprensa para as nossas instituições, as nossas democracias e para o aprofundamento da cidadania, das liberdades e garantias. Por isso, reafirmo, é sempre um prazer poder testemunhar a boa forma e a simpática longevidade de um diário e agradeço o convite que me foi dirigido, pelo seu director Afonso Camões, para estar aqui hoje.
Falar de jornais é também falar da língua em são redigidas as notícias, as crónicas, os textos críticos, neste caso a língua portuguesa, a nossa língua comum, com mais de oito séculos de história, num percurso que nos uniu, unindo os nossos pais e avós e outros que vieram antes, e que nela nasceram, viveram e cumpriram a sua passagem por este mundo. Uma língua com uma história antiga, como sabemos, que se formou no caldo desses dias turbulentos de uma Idade Média nascida dos escombros do Império Romano, de um Latim ‘contaminado’ de outros falares, populares e locais, de vocábulos novos – de gente construindo novos caminhos. Uma língua que se foi autonomizando da sua génese galaico-portuguesa, a partir do século XII, e que se tornou no veículo de comunicação, quando comunicar significava distância, dias de marcha e viagem entre populações, localidades e regiões.
Mas este falar, que se tornou nosso e nos moldou, com os salpicos dessa viagem, é hoje uma casa de todos nós, com vários compartimentos, várias janelas, um espaço em contínuo crescimento e ampliado por gerações, numa geografia de sorrisos, olhares, sentimentos, em constante movimento. Em oito séculos de cultura, linguística diversificada e literatura, a língua portuguesa foi e tem sido meio de expressão e interpretação dos mundos particulares de nomes como Machado de Assis, Luís de Camões, João Vário, Fernando Pessoa, Eugénio Tavares, Herberto Helder, Craveirinha, Pepetela, Arménio Vieira, Raduan Nassar, Francisco José Tenreiro, Odete Semedo, José Saramago, Padre António Vieira, Germano Almeida, Mário Cesariny, entre muitos outros.
Esta é a nossa língua portuguesa – ‘a última flor de Lácio’, nas palavras do poeta Olavo Bilac -, alimentada por desertos, florestas, rios, mares, cidades, ventos, montanhas – de todas as cores -, que a escutaram e aprenderam a sua sonoridade, insuflando-lhe, depois, sabores e aromas locais tão díspares e tão particulares, e lhe deram esta riqueza que a torna singular no conjunto dos idiomas existentes. E nela existimos, fazendo dela parte do nosso mundo, o sal das nossas vidas e miradouro para as cousas e os mares que nos circundam, para os rumores que nos chegam das suas vagas. De algum modo, o ancoradouro que nos impede de nelas naufragar. Somos também filhos deste corpo vivo, orgânico, dinâmico, desta criação colectiva surgida das margens do oceano, uma língua que também é mestiça no seu andar, na sua musicalidade, no seu perfume, nos seus, amiúde, surpreendentes e sábios requebros. [Una na sua rica diversidade, no entanto, lembrando-nos a sábia asserção de Padre António Vieira quanto à impetuosidade do rio, enquanto dentro na madre, «… que é estrago das flores e assombro dos ribeiros, e em se dessangrando suas correntes por novos caminhos fica tão fraco, que o que antes não sofria pontes, já se deixa pisar dos caminhantes…» (in Carta política ao Conde de Castelo Melhor no tempo da sua privança)]
Presente nos cinco continentes, a língua portuguesa é uma língua oceânica, de povos em viagem, de homens e mulheres em permanente busca do sonho, de uma vontade inabalável de ver outros mundos, numa busca incessante pela felicidade e quimeras, de júbilo e de alegria. É também, não o podemos esquecer, uma língua de dor, de sofrimento, do medo, da opressão, do desespero, veículo de expressão de terríveis decisões para alguns, de injustiças para muitos. Mas também é hoje, sobremaneira, uma língua de liberdade, concórdia, esperança, fraternidade, solidariedade, democracia, direitos humanos, da cidadania. Um veículo de expansão das nossas sociedades, do desenvolvimento dos nossos povos, da transmissão de valores, da passagem de testemunho para as novas gerações, de garantia da continuidade da nossa cultura literária, artística, e sobretudo da aprendizagem e do intercâmbio de experiências e de ideias com outros povos.
Esta casa comum, que é a nossa língua portuguesa, é constituída, segundo as últimas estatísticas, por cerca de 260 milhões de pessoas, espalhadas pela Europa, América, África, Ásia e Oceania. E aqui teremos também de referir os imensos vocábulos e crioulos de origem portuguesa dispersos por várias regiões asiáticas, como a Índia, a Indonésia, a Península Malaia, no Sri Lanka, Macau. Resquícios de um falar que deixou rastos ainda visíveis no dia a dia dessas populações.
Socorremo-nos, mais uma vez, dos números que indicam também que a língua portuguesa é a sexta mais falada no mundo, e ainda a quinta na internet, com mais de 121 milhões de utilizadores, e a terceira no Facebook. Como podemos ver, uma língua em franca expansão, sobretudo na América e em África – uma língua de futuro, portanto. Assim, mais do que uma língua de união e que contribui para a coesão entre os seus falantes, o português ganha cada vez mais importância estratégica, já que também vem sendo adoptado como instrumento de trabalho em várias organizações internacionais. É uma língua cada vez mais procurada e ensinada em instituições de ensino de todo o mundo, com particular destaque para a China.
Mas a língua também é um activo económico muito importante, nos mercados, e esse potencial ainda está para ser devidamente calculado e explorado. Num mundo globalizado à escala a que assistimos, os povos têm de reconhecer e saber aproveitar as suas vantagens comparativas, de onde poderão resultar mais-valias indispensáveis para o progresso social e económico dos seus cidadãos. Assim, mais do que a afirmação identitária ou cultural, a língua portuguesa, através das instituições que se ocupam dela, nos nossos países, deve tudo fazer para ser tornar num factor de desenvolvimento social, económico e humano. A aprendizagem do português deve ser vista como uma grande vantagem para as nossas sociedades, em todos os domínios. No seio da CPLP, o valor económico e o potencial da língua portuguesa são a base para uma plataforma comum de desenvolvimento dos Estados-membros e fortalecimento da Comunidade. O caminho passa, assim, por fazer do português cada vez mais uma língua de negócios, nos vários sectores, divulgar e promover a sua projecção nos vários fóruns e aproveitar o crescente interesse na sua aprendizagem, no contexto global.
Temos todos de estar optimistas quanto à sua evolução e afirmação no contexto mundial, pois calcula-se que, nos próximos 40 anos, haverá mais 100 milhões de falantes do português, o que reforçará a presença do idioma entre os mais utilizados no mundo. Somos legatários, usuários e transmissores de um idioma que contribuiu para o enriquecimento do património linguístico e para a diversidade cultural da Humanidade. A nossa palavra, escrita e falada, como dissemos, tem um lugar muito especial no mundo, sobretudo no Atlântico Sul, e que tende a aumentar, com as boas perspectivas do crescimento demográfico deste espaço de excelência do mundo lusófono, num mar balizado pelos PALOP e o Brasil.
É contrapondo esta realidade com o facto de o português ser a sétima língua mais falada da zona euro, a décima terceira posição que ocupa na União Europeia, que lhe dá uma característica muito especial: a de uma língua europeia, cuja evolução se faz, sobretudo, fora da Europa. Assim, a língua portuguesa, nascida e criada na Península Ibérica, tornou-se palavra transoceânica, cosmopolita, fluida, nossa, e como alguém disse, ‘senhora e dona de quem a fala’. A sua posse aos seus falantes pertence e o usufruto a quem a pratica e enriquece na sua labuta diária.
Excelências,
Ilustres Convidados
Minhas senhoras e meus senhores,
Já aqui vimos como a internet, essa ferramenta hoje indispensável, está a ser um dos campos de expansão, por excelência, do nosso idioma no mundo. A publicação e a disseminação do conhecimento em trabalhos científicos, culturais, literários, de qualidade, a troca de informação económica, de relações comerciais, para lá do volume da informação disponível, deverá assegurar a implantação do português como língua cada vez mais útil, internacionalmente.
Ao contrário do plano externo, como já vimos, as contingências que se colocam à língua portuguesa, curiosamente, resultam do próprio mundo lusófono. Não podemos falar de ameaças ou de perigos para a nossa língua comum, mas de algumas discordâncias internas, e que resultam de um processo histórico próprio de uma língua transcontinental, e com processo evolutivo muito particular, em cada um dos territórios que constitui o seu espaço.
Como é sabido, a expansão de uma língua passa igualmente pelas instituições que asseguram o seu estudo e ensino, em vários pontos do globo: leitorados e professores, centros de estudos de língua portuguesa, profissionais dedicados, em cada canto dos nossos países, nas diversas regiões do globo, que vão velando pelo bom uso da fala e da escrita, assegurando a competência linguística e o domínio da norma culta. Ninguém ignora como este domínio é condição essencial de sucesso para profissionais em todas as áreas. O acto de falar e escrever bem, com lógica, rigor e riqueza vocabular transforma a língua em ferramenta da cultura, mas também de intervenção cívica, política e económica.
E é nessa linha de rigor e de constante elevação da língua escrita e falada, que expresso a minha satisfação, enquanto Presidente da República de Cabo Verde, por a nossa capital, Praia, albergar a sede do Instituto Internacional da Língua Portuguesa. Estamos conscientes do significado que é de ter o IILP sediado na Cidade da Praia, bem como do trabalho que vem sendo desenvolvido pelas diferentes equipas que estiveram à frente deste organismo. Uma tarefa, como sabemos, árdua, difícil, persistente, imaginativa na busca de soluções para as dificuldades e obstáculos, sobretudo financeiros. Mas também na busca constante do reconhecimento e valorização do seu importante papel por parte das entidades oficiais, na sua senda da promoção da língua nos une.
E é pensando no clima de optimismo existente em torno da língua portuguesa no mundo, já aqui referidos, que devemos renovar a aposta e confiança nesta instituição, cujo objectivo é servir todos os falantes e usuários da língua portuguesa. Por isso, Cabo Verde, terra de poetas, ficcionistas, que sempre cultivaram com esmerada dedicação a língua portuguesa, que fizeram dela o veículo do seu imaginário literário e do que Eduardo Lourenço chamou «errância da substância humana», de intervenção cívica e política, eu dizia, o meu país quer apostar no reforço deste importante organismo, enquanto farol e bastião da língua portuguesa, bem como da continuidade da sua sede na capital do país.
[Cremos poder ser oportuno relembrar o que disse, bem antes de ser Chefe de Estado de Cabo Verde, num Fórum sobre a CPLP, e a propósito concretamente da criação de um Instituto Internacional da Língua Portuguesa: «… É necessário, pois, que haja demonstração clara de vontade política de todos de assunção do património histórico, cultural e linguístico comum, eliminando-se os preconceitos, os complexos, as hesitações e os desencontros resultantes de incompreensões de um passado recente. Ela exige de todos sem excepção uma convicçäo profunda da necessidade e da utilidade da Comunidade, sem a qual todos os esforços e iniciativas serão condenados ao impasse, se não ao insucesso. Mais rasamente, o futuro da Comunidade e do Instituto dependerá também daquilo que quisermos venha a ser a língua portuguesa, da importância que lhe atribuirmos como veículo de comunicaçäo e instrumento de cultura. Enfim, dependerá, de algum modo, da existência ou não de um amor pela língua portuguesa, enquanto língua também nossa.]
Excelências,
IlustresConvidados,
Ao contrário daquilo que Fernando Pessoa disse e que é, sem dúvida, uma das formas mais particulares de sentir esta língua que todos falamos, amamos e cultivamos, a língua portuguesa não é a nossa Pátria. A língua portuguesa é, sim, a nossa ‘Mátria’, se quisermos, no sentido em que ela é a matriz da nossa forma de expressar o imaginário. Com ela e através dela interpretamos a nossa cultura atlântica, a nossa realidade e condição de ilhéus; como Cesária Évora, cantamos Cabo Verde em crioulo, é verdade, mas contamos e descrevemos Cabo Verde em português, desde sempre.
Recordo aqui que a língua foi também o elemento que nos uniu, mesmo quando nos encontrávamos divididos, enquanto povos, por uma ditadura cega e anacrónica. Mesmo perante as encruzilhadas da História e a angústia dos combatentes, de ambos os lados da trincheira, Amílcar Cabral nunca hesitou sobre a importância deste extraordinário veículo de comunicação, afirmando, como todos se devem recordar, que a língua seria a maior herança que o colonizador poderia deixar em África. E já o era. A prova disso está na produção literária, em Cabo Verde, pois foi precisamente através da literatura, escrita em língua portuguesa, que a nossa poesia, a nossa prosa nos trouxe a independência literária e cultural.
Foi esta língua portuguesa – sobretudo a partir de 1936 com a criação da revista Claridade e dos escritores que integraram este movimento, que traria a modernidade literária às ilhas -, a nossa janela para o exterior e ao mesmo tempo o instrumento de interpretação das nossas ansiedades, nossos clamores, nossos desejos e angústias. Lado a lado com a língua crioula – esta também, para todos os efeitos, uma língua neo-latina – as nossas letras cedo moldaram e transmitiram o nosso imaginário, quer nas ilhas e quer na diáspora. Portanto, para nós cabo-verdianos, a língua portuguesa também tem sido o activo cultural, por excelência, e basilar na nossa relação para com o mundo. E essa caminhada, esse percurso feito pelas nossas letras – não posso deixar de o assinalar -, vem conhecendo uma nova e entusiasmante fase, com o reconhecimento além-fronteiras dos nossos escritores e poetas, com destaque para o Prémio Camões de 2009, atribuído a Arménio Vieira e agora, nove anos depois, e para enorme satisfação nossa, a Germano Almeida, há bem poucos dias. Para um país pequeno como o nosso, como devem compreender, representa muito, sobretudo para as novas gerações.
Sabemos como nos tempos que correm, de uma globalização galopante, que nos desactualiza a todo o instante, o mais fácil seria resignarmo-nos ao peso e à facilidade que acompanham a língua franca do momento. As nações procuram conseguir todas as vantagens possíveis num mundo competitivo, ampliar o seu raio de acção ou influência, a sua capacidade negocial e atrair sobre si as atenções da comunidade internacional. É perfeitamente legítimo e isso também faz a nossa história; permite sonhar e desejar um nível de desenvolvimento económico que traga felicidade e bem-estar às nossas populações. Mas seria penalizador, a todos os níveis, se abdicássemos desse elemento ao mesmo tempo diferenciador e unificador desta comunidade, com uma história comum, que é o potencial desta língua tão antiga e tão rica, e que muito tem dado ao mundo. Este contributo de instrumento de difusão das nossas culturas – em especial no domínio das ciências sociais, artes e humanidades – também deve ser visto na perspectiva de aumentar a diversidade da oferta cultural e científica e de evitar, assim, a estreiteza do pensamento único, quer em esquemas mentais, quer na visão global do mundo.
Essa contribuição do nosso espaço linguístico para a riqueza da Humanidade também deverá passar pela publicação de conhecimento científico, pois que não faz sentido este ser apenas veiculado numa única língua. A disseminação desse conhecimento, inevitavelmente, obriga a um intercâmbio universitário cada vez maior no espaço lusófono, colocar em rede as nossas universidades, institutos e politécnicos, estimulando o ensino e a investigação, para o benefício de todos. Esta poderá ser a nossa pedra nessa correlação de forças no plano linguístico.
Minhas…
Daqui a pouco mais de mês e meio a ilha do Sal acolhe a Cimeira dos Chefes de Estado e de Governo da CPLP e Cabo Verde assumirá a presidência da Comunidade a partir de Janeiro de 2019. O lema da nossa presidência será A Cultura, As Pessoas, Os Oceanos, e como podem verificar, a língua portuguesa é o elemento transversal e aglutinador destas três componentes. Também se pode ver como estas três realidades resumem a nossa existência partilhada e transmitem a percepção de um mundo particular de que fazemos parte, um espaço de expressão cultural muito próprio. Este património, que é a língua portuguesa, encontra o seu enquadramento institucional neste organismo, a Comunidade dos Países de Língua Portuguesa, que vem servindo, há mais de vinte anos, de fórum para o debate de várias questões que dizem respeito aos nossos países. E aqui temos de assinalar, igualmente, o interesse crescente que esta comunidade vem suscitando a nível global, nos últimos anos, com pedidos de estatuto de observador por parte de países, como a Itália, a França, a Geórgia, a Turquia, o Uruguai, o Japão, a Hungria, a República Checa, a Namíbia, a Eslováquia, as Maurícias, o Senegal e Andorra, ultrapassando, como se vê, o âmbito da língua. Mas é a língua a pedra angular desta comunidade, é ela o seu ‘animus’, daí a nossa preocupação, neste debate, em especial para com as ideias orientadas para estratégias e políticas de educação e formação, e a prioridade que estas merecem por parte do poder político. Existem obstáculos, é verdade, já claramente identificados, e que resultam dos diferentes níveis de desenvolvimento dos nossos Estados e dos recursos existentes, para o investimento no ensino da língua portuguesa. Mas o apelo continua, e continuará sempre, no sentido da concertação de esforços, a todos os níveis, na sensibilização para uma maior solidariedade, maior aproximação, sobretudo por parte dos países que já atingiram um nível de desenvolvimento assinalável. Fi-lo repetidamente antes de ser Chefe de Estado e continuo a fazê-lo nesta qualidade no meu país e aqui neste memorável evento.
Rasamente: estou e estarei bem distante daqueles que, na cómoda e ondulante vertigem da modernidade, acreditam e proclamam que basta disseminar o inglês e massificar a internet e a informática para termos garantido o progresso de todos. Não há verdadeiro desenvolvimento humano que não se estribe numa funda e rica cultura humanística.
Para lá das instituições, dos corredores e dos gabinetes arejados dos paços e dos governos, este é o vector comunicacional e fundamental que nos une há séculos, e que mais do que as ruínas de fortes e faróis, espalhados ao longo de uma costa, sobrevive e se expande em nós; uma língua vivificada, num longo e complexo processo orgânico. Uma língua reinventada, todos os dias, em diferentes latitudes e geografias, por gente tão diferente; praticada ao longo de rios caudalosos e desertos vermelhos, por entre a chuva forte e vaporosa, o vento oceânico e a estiagem. É a fala da nossa cultura, o eco dos nossos antepassados. E nos tempos que correm, o ‘fundamento de uma actuação conjunta’ desta realidade geocultural e humana, a que chamamos Lusofonia.
[Caberia aqui furtar versos de Sophia de Melo Breyner: A terra o sol o vento o mar
São a minha biografia e são meu rosto]
Nesta língua construíram-se impérios e paixões, conviveram súbditos e soberanos, desfizeram-se mitos e ergueram-se nações; sonhou-se a liberdade e edificaram-se Estados. Nas letras nela produzidas, nas regiões do nosso espaço comum, criaram-se até dinastias estilísticas, fascinadas com a sua plasticidade, capacidade inventiva. Canais comunicantes, como sabemos, que passam de Guimarães Rosa para Luandino Vieira, deste para Mia Couto, e deste ainda para Ondjaki; também de um Jorge Amado para Germano Almeida, mas igualmente alimentando a rivalidade criativa entre Machado de Assis e Eça de Queirós. Há ‘Menino do Engenho’, de Lins do Rego, nos gerúndios de ‘Chiquinho’ de Baltasar Lopes, apontam alguns; e que dizer desse voo inescapável para Pasárgada, de Manuel Bandeira, que intrigou e assombrou os poetas modernistas cabo-verdianos. Mas também, daqui bem perto, descendo da pena galega de Rosalia de Castro, a língua portuguesa também se fixou na monumentalidade das muralhas desta invicta urbe; ‘nas torres cinzentas, nos pátios e nos muros em que se cavam escadas’, segundo Agustina Bessa-Luis, neste lugar, onde, para Sophia de Melo Breyner, ‘começam todas as maravilhas e todas as angústias’. Não podemos ignorar o valioso contributo das letras orgulhosas e combatíveis do Norte, se assim o poderemos dizer, para a língua no seu todo, para esta literatura de pedra, corpos, areia, paixão e sal, da vida como ficção (tragédia, drama e comédia juntos – Camilo, segundo EL), que nos abraça no seu esplendor multifacetado.
Mourisca’, de Júlio Diniz, ou o simbolismo poético e exaltante de um António Nobre. Os dias por aqui, ouvimos dizer, têm uma fragrância muito própria, uma harmonia íntima, que ecoa na forma de rir e na espontaneidade peculiar dos habitantes desta ‘cidade de pergaminhos honrados’, como lhe chamou Miguel Torga. Mas também é do alto desta nossa língua, mesmo trocando os vês pelos bês, que se enfrentam os abismos que assaltam poetas e prosadores. É com ela que se dobram os mitos do passado e se mede a dimensão da finitude, da morte e da angústia. E no final da jornada, como disse Mário Cláudio, o biógrafo de todos os biografáveis desta cidade, ‘conseguir o pequeno milagre de transformar aquilo que genericamente se chama o sofrimento em várias oportunidades de sorriso’.