Eu queria começar esta intervenção por uma nota pessoal.
Logo que eu assumi as posições de Primeiro-Ministro, David Cardoso pediu-me uma audiência para falar comigo. E quando chegou, disse-me, Sr. Primeiro-Ministro, se não me falha a memória são 24 anos, disse-me, “eu sou do quadro do Ministério da Agricultura e gostaria de poder trabalhar no movimento associativo para cuidar, apoiar, proteger as pessoas com deficiência em Cabo Verde”. E eu disse-lhe, mas o que é que o Primeiro-Ministro pode fazer? Ele disse-me “Já pedi várias vezes para ser destacado e não fui destacado para trabalhar e tenho que, ao mesmo tempo, ir ao Ministério da Agricultura e também trabalhar no movimento associativo de pessoas com deficiência”.
Eu disse-lhe pode contar que a partir de amanhã será destacado para trabalhar nesse movimento associativo e, quando ele saiu do meu gabinete, chamei o então Ministro da Agricultura e disse-lhe, olha, há esta situação e vamos imediatamente destacar o Engenheiro David Cardoso para trabalhar com o movimento associativo e fizemos o destacamento e, em vários momentos, nos encontramos e pude ver o ganho que foi este simples detalhe de destacar o Engenheiro David Cardoso para trabalhar no movimento associativo e pude acompanhar também os ganhos.
Recebi líderes de outras associações de São Vicente, aqui da Praia e, sempre chegavam ao meu gabinete com algumas dificuldades. Tínhamos que, primeiro, saber se o elevador estava a funcionar porque não havia outros mecanismos de acesso e, para se chegar ao gabinete do Primeiro-Ministro, era preciso entrar pela porta principal e não pela porta da Chefia do Governo porque, pela porta da Chefia do Governo, era impossível o acesso ao elevador.E foi a primeira dificuldade no encontro com David Cardoso e, depois, com outros líderes associativos.
Mas pude acompanhar os ganhos, pude acompanhar, Bernardino, a criação do CENORF e, desde o terreno, com o apoio da então Câmara Municipal da Praia, o financiamento, a construção e os primeiros passos do CENORF.
Há um trabalho silencioso em Cabo Verde que, muitas vezes, não tem visibilidade e as pessoas não dão a devida importância, o devido valor a esse trabalho. Trata-se do trabalho que o CENORF tem feito. Enquanto primeiro-Ministro, fui lá várias vezes e, logo que eu assumi o cargo de Presidente da República, quis ir lá para ver o trabalho que se estava a fazer, com mais dificuldades do que no momento inicial, mas com ganhos extraordinários. Com ganhos extraordinários!
Então, neste momento, em que comemoramos os 19 anos do CENORF e vamos entrar na comemoração dos 20 anos, eu queria dar os parabéns a todos os líderes associativos, a todos os que se empenharam, efetivamente, na defesa dos direitos das pessoas com deficiência.
Num dos aniversários do governo, convidei o Mão na Roda para estar lá connosco, para as pessoas verem o esforço que essas pessoas fazem. E, numa das comemorações do Dia Internacional das Pessoas com Deficiência, fui à Achada de São António andar num carrinho de roda com os deficientes. Porque eles queriam mostrar-me, enquanto Primeiro-Ministro, as dificuldades por que passam em Cabo Verde para terem acesso a serviços públicos, para terem acesso a uma farmácia, para terem acesso a uma escola. E foi uma dificuldade. Mesmo andar nas ruas, com buracos, e a possibilidade de subir num passeio, de entrar numa lanchonete, etc. Então, eu senti-me sempre comprometido em apoiar, em ajudar a cuidar.
Mas também devo destacar o trabalho desses dirigentes que sempre bateram à porta. Eu lembro-me agora, também, do Júlio (Manuel Soares Rosa), o sociólogo, da ADEVIC, na altura acho que ainda estava a terminar os seus estudos, depois regressou a Cabo Verde fui para São Vicente, que também foi lá várias vezes falar comigo. E eu pude acompanhar o esforço do Dr. Júlio para concluir os seus estudos, o esforço para apoiar os outros a superarem. E hoje quando se fala de inclusão e superação, posso dizer que, efetivamente, fizeram um trabalho extraordinário para garantir a inclusão, eu lembro-me do Júlio, no meu gabinete, a falar da necessidade de desenvolvermos diplomas, tomarmos medidas para a educação de pessoas com necessidades especiais. E, a partir daí, foram tomadas várias medidas.
Então, permitam-me, neste primeiro momento, prestar esta homenagem. Lembro-me agora do Júlio, lembro-me do David Cardoso, vem-me à memória o Sr. de São Vicente, o Sr. Daniel (Gomes da Associação de Pessoas de Condições Especiais de Cabo Verde -ADEF), era muito mais difícil ainda o acesso. E eu lembro-me, tenho uma fotografia dele, ele e o seu carinho, eu no meu sofá, a conversarmos no gabinete do primeiro ministro. Permitam-me prestar a homenagem a essas pessoas neste momento e pedir-vos uma salva de palmas.
É claro que houve desde então uma forte vontade política no sentido de melhorar a situação das pessoas com deficiência. Várias medidas de política têm sido tomadas por sucessivos governos de Cabo Verde, para além também da adoção e ratificação de instrumentos internacionais que visam promover e proteger os direitos das pessoas com deficiência. Cabo Verde já ratificou, por exemplo, a Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência. Embora ainda não tenha ratificado o protocolo facultativo, assim como a Convenção 159 da OIT sobre formação e emprego para as pessoas com deficiência. E agora também o Bernardino Gonçalves refere-se ao Protocolo Africano para as Pessoas com Deficiência. Já tomámos nota e é preciso trabalharmos no sentido de não só ratificar os protocolos que ainda faltam a ratificar, mas também criarmos condições internas para a sua plena aplicação no país.
Também vários diplomas têm sido aprovados, vários instrumentos jurídicos. Temos o Decreto-Lei de Acessibilidade aprovado em 2011. O Decreto-Lei de Acessibilidade tem muito a ver com a pressão das diferentes lideranças, das diferentes associações.
Eu, por exemplo, falei da minha experiência na Achada de Santo António. Em 2011 aprovamos o Decreto-Lei de Acessibilidade, mas antes, em 2009, o Decreto-Lei nº 50 de 2009, que estabelece as condições indispensáveis à redução do subsídio de deficiência. A Portaria nº 29 de 2006, que regula a comparticipação nos tratamentos de fisioterapia.
A Portaria nº 50 de 2010, que atualiza os montante e abonos e prestações complementares, a resolução de 2006 sobre a proteção social no regime não contributivo. Também Cabo Verde que é parte de vários outros instrumentos jurídicos, morais e normativos internacionais, como a Declaração Universal dos Direitos Humanos, a Convenção internacional sobre as pessoas com deficiência. Todo esse trabalho deriva muito, como eu já vos disse, da pressão, da influenciação das organizações não-governamentais, que têm feito, repito, um trabalho de meritório.
Temos o CENORF, Centro Nacional de Equipamentos Ortopédicos e Educação Funcional, temos a FECAD, Federação das Associações de Pessoas com Deficiência, a ACD, Associação Cabo-verdiana de Deficientes, a ADEF, a Associação de Desenvolvimento e Formação de Pessoas de Condições Especiais de Cabo Verde, a ADEVIC, a Associação dos Deficientes Visuais de Capo Verde, e temos depois outras organizações, como a COLMEIA, a ACARINHAR, a Associação Cabo-verdiana dos Surdos, a Associação de Mulheres com Deficiência, a Federação Cabo-verdiana do Desporto Adaptado, o Grupo Mão na Roda, e ainda, a destacar, a parte mais estatal, o trabalho da Comissão Nacional dos Direitos Humanos e Cidadania, e mais recentemente, o trabalho da Procuradoria da Justiça de Cabo Verde.
Como disse aqui, também, o presidente Bernardino Gonçalves, é difícil encontrar aqui na nossa região, talvez não exista, uma instituição como o CENORF, gerido por uma associação, por uma ONG, mas também é um ganho importante de Cabo Verde ter essa realidade, e não ser uma organização do Estado, mas ser uma organização da sociedade civil, e com o apoio do Estado, dos municípios e da própria sociedade civil. É importante esse fato aqui em Cabo Verde, mas é sobretudo importante dar visibilidade a esse extraordinário trabalho que é realizado.
A deficiência é uma condição que a qualquer momento um de nós poderá ter ou estar, daí a necessidade de sempre pautarmos pela melhoria constante dos instrumentos legais e das políticas públicas. Às vezes, quando estamos no poder, esquecemos de determinadas realidades que no momento não nos são muito próximas ou muito tangíveis. A deficiência é uma realidade que pode atingir a qualquer um, e então nós temos que ter consciência da nossa precariedade, independentemente do grau de poder que nós temos. E, sobretudo, prestar atenção àqueles que são mais frágeis, mais vulneráveis, e precisam mais do apoio do Estado.
Relativamente aos instrumentos jurídicos e às leis, aos diplomas, às convenções, no quadro desses 20 anos é preciso fazermos um balanço, porque muitas dessas leis não são implementadas no seu programa. Há muitas lacunas na implementação desses diplomas legais.
Há muitas dificuldades. E, por exemplo, desde 2011 temos a lei da acessibilidade, mas ainda temos enormes dificuldades na acessibilidade das pessoas. Ainda temos arquitetos insensíveis a essa questão. Cada vez prédios que nós vemos, e quando depois chegamos mais perto, vemos que não há condições para as pessoas com necessidades especiais terem acesso a esses prédios. Mas não são só os arquitetos. São os arquitetos e aqueles que decidem relativamente a essas questões.
É de boa prática que as leis sejam feitas com equipas interdisciplinares. O jurista, não sei se está aqui algum que me desculpe, mas o jurista escreve o que nós decidimos relativamente às questões. Ainda é preciso criar equipas interdisciplinares. Quando estamos a construir um prédio, temos, por exemplo um prédio público, ver as necessidades das pessoas com deficiência. E discutir outros aspectos importantes relacionados com esse prédio. Não deixar só o arquiteto, não deixar só o jurista fazer a lei, não deixar só o arquiteto fazer o prédio, não deixar só o arquiteto fazer a planta de um hospital. Isso é extremamente importante.
E temos de ver os ganhos que já temos no domínio da educação, no domínio do desporto. Eu tenho acompanhado as medalhas dos atletas paralímpicos, os ganhos que têm tido.
E temos de ver os constrangimentos, os problemas que ainda temos na área da saúde, na área do desporto, na área da cultura. Sempre destaco o extraordinário trabalho do Grupo Mon na Roda. E sabemos também que a pobreza atinge mais fortemente as pessoas com deficiência. As taxas de pobreza são mais elevadas, as pessoas têm mais dificuldades de acesso a emprego.
E eu cheguei aqui à Presidência e a telefonista era uma pessoa com deficiência visual. Mas eu nunca vi tanta eficiência no trabalho que ela fazia. E claro, chegou à idade, já estava tão habituada a fazer os telefonemas, a teclar rapidamente, independentemente dos números, que quando chegou a idade (da reforma) ela não quis sair. Não queria ir para casa, queria continuar aqui a trabalhar. Mas é preciso destacar a eficiência do trabalho que ela fazia.
Mas também reconhecer que as pessoas com deficiência têm muito mais dificuldades de acesso a emprego, de acesso a atendimentos. Por isso a pobreza atinge mais fortemente as pessoas com deficiência.
Então, que estes 20 anos sirvam para uma reflexão sobre os ganhos que nós conseguimos, e já são muitos, graças ao empenhamento, um forte empenhamento das pessoas com deficiência.
E é preciso dizer o seguinte. Quem está no governo, precisa muitas vezes que haja uma pessoa que chegue perto para sentir a luz. Dizer, “olha, é preciso vir para essa questão”.
E é por isso que eu destaquei aquele detalhe no início, com o engenheiro David Cardoso. Porque ele despertou a minha mente para essas questões ligadas às pessoas com deficiência. Se eventualmente ele não o tivesse feito, com tantas outras preocupações, eu talvez não tivesse aquela sensibilidade inicial.
É por isso que o vosso trabalho é importante. É por isso que o trabalho dos cidadãos é extremamente importante. É por isso que a sociedade civil é extremamente importante.
Desde que eu assumi a presidência, tenho insistido no seguinte. Nós, em Cabo Verde, temos Estado de mais. Tudo é estatizado.
Precisamos de desestatizar a sociedade, de desestatizar a cabeça dos cidadãos, para haver mais autonomia, mais pressão. É isso que faz o desenvolvimento. Lá onde há mais debate, há mais discussão, há mais participação na sociedade civil, ONGs, universidades, igrejas, partidos, sindicatos, académicos, etc, há muito mais qualidade nas políticas públicas e há muito mais desenvolvimento.
Então, espero que, nesses 20 anos, tenham a possibilidade de refletir sobre essas questões e de contribuir, efetivamente, para que possamos remover os constrangimentos que ainda existem e dar o salto no sentido de responder com muito mais efetividade às demandas e às exigências das pessoas com deficiência aqui em Cabo Verde.
Feliz aniversário, continuação de bom trabalho. Eu acho que vocês devem convidar empresas, cidadãos, igrejas, universidades, partidos políticos. E aí, se vocês convidarem os partidos políticos para irem lá, os deputados. Vão e, quando chegarem ao Parlamento, discutir coisas mais úteis. Em vez de estarem a discutir, pessoas passam a discutir políticas, a discutir, por exemplo, o que vamos fazer para melhorar as condições de vida daqueles que têm necessidades especiais.
Parabéns e bom encontro. Bom trabalho.