Discurso da Sua Excelência o Senhor Presidente da República  por ocasião da cerimónia de abertura das Jornadas Científicas e Culturais: O Património da Cidade Velha e a Identidade Nacional

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Cidade Velha 29 de janeiro de 2025

Minhas Senhoras e meus Senhores,

As minhas primeiras palavras são de agradecimento às Instituições coorganizadoras destas Jornadas Científico-Culturais, nomeadamente a Câmara Municipal da Ribeira Grande de Santiago e a Universidade de Cabo Verde, pelo honroso convite para proferir o Discurso de Abertura desta Conferência.  Encorajo o Presidente Nelson Moreira e o Magnífico Reitor Arlindo Barreto a prosseguirem com esta parceria virtuosa, promovendo mais edições, dando suporte a esta tradição que tende a enraizar-se.

Recordo que, em junho de 2009, a Cidade Velha foi inscrita no Património Mundial da UNESCO. Para fazer parte desta prestigiosa Lista da Humanidade, o dossier de candidatura deveria demonstrar que o sítio correspondia a um conjunto de critérios científicos, com provas da sua riqueza histórica única e dos requisitos legais de sua proteção.

A importância da Cidade Velha reside na riqueza dos vestígios dos complexos arquitetónicos militares, religiosos e civis, testemunhos do florescente comércio transatlântico de escravos e da sua função como laboratório de intercâmbios culturais e agrícolas. A Cidade Velha foi, portanto, um ponto de recriação de novas identidades e de diasporização atlântica de homens, saberes, plantas essenciais à dieta alimentar da humanidade (cana de açúcar, milhos, feijões, agrumes, arroz), danças, músicas, espiritualidades e artes culinárias.

Esses argumentos, cientificamente demonstrados no dossier de candidatura, constituem o que é chamado de “Valor Universal Excecional” da Convenção do Património Natural e Cultural da UNESCO que define o quadro legal para inscrever um sítio a Património Mundial e diz exatamente: “O Valor Universal Excecional significa uma importância cultural e/ou natural tão excecional que transcende as fronteiras nacionais e se reveste de uma importância comum para as gerações atuais e futuras de toda a humanidade. Assim sendo, a proteção permanente deste património é da maior importância para toda a comunidade internacional. O Comité define os critérios para a inscrição dos bens na Lista do Património Mundial”.

A Cidade Velha é conhecida como o berço da Nação cabo-verdiana. A identidade nacional é o que nos une, o que nos diferencia e o que nos orgulha. Alimenta-se da nossa língua, nossa música, nossas danças, nossos ritos, nossas artes, nossa história e nossos valores. É a base sobre a qual estamos construindo nosso futuro. A identidade é algo dinâmico, que é revisitado, posto em causa e reconstituído a cada instante. Por isso mesmo, evolui, se enriquece e se adapta a partir das suas raízes.

A nossa identidade nacional é essa crioulidade que pulsa em cada um de nós, essa mistura harmoniosa de diversidade e unidade.  Mas a identidade crioula não é apenas uma herança. É uma força viva, uma forma de estar no mundo. Ensina-nos que a diversidade é uma riqueza, que a miscigenação é uma fonte de criatividade e a abertura aos outros é uma necessidade.

Num mundo onde as identidades são demasiadas vezes crispadas/tensas, onde se constroem muros entre povos, Cabo Verde tem uma oportunidade para fazer pedagogia de coexistência. A nossa identidade crioula é um modelo de convivência, de diálogo e de enriquecimento recíproco. Por esta razão, deploramos profundamente o perigoso afloramento de atitudes racistas, que espalham o medo e a perseguição, aterrorizam famílias, e que nos remetem para práticas análogas ao apartheid e similares, de muito má memória na história da humanidade.

Enquanto Champion da União Africana para a Preservação do Património Natural e Cultural da África, pretendo organizar uma Cimeira da Crioulidade, em 2025, para celebrar o contributo de Cabo Verde na humanização do Atlântico.

A identidade crioula está no nosso DNA. É o batuque e a morna, estes ritmos que embalam as nossas almas e falam das nossas alegrias e tristezas. É a língua cabo-verdiana, o crioulo, que ressoa nas nossas casas, nos nossos mercados e nas nossas canções. É a nossa culinária, onde a cachupa se torna um símbolo de partilha e resiliência. As lutas persistentes contra a subjugação, pela dignidade humana e igualdade, os movimentos literários de escritores como Eugénio Tavares, Pedro Cardoso,  Baltasar Lopes da Silva, Manuel Lopes, António Aurélio Gonçalves, Corsino Fortes ou Germano Almeida ou a vontade indómita de libertação trazida pela geração de Cabral, a construção dos alicerces do Estado soberano, a expansão das liberdades civis e políticos e a conquista da democracia são momentos dessa construção identitária, que nos inspira na realização de um futuro de liberdade, prosperidade e oportunidades partilhadas.

Mas hoje, diante dos desafios da globalização, devemos nos perguntar: como podemos preservar a nossa identidade nacional enquanto contribuímos para o Património Mundial? Como podemos fazer ouvir a nossa voz no concerto das nações, sem perder a alma?

Neste contexto, a língua é muito mais do que um meio de comunicação; é o coração pulsante de nossa identidade, o veículo de nossas tradições, nossas histórias e nossos valores. Cada língua carrega consigo uma herança única, um conhecimento ancestral que merece ser preservado e celebrado.

A língua materna, como símbolo de nossa unidade e diversidade, desempenha um papel crucial na transmissão de nossa herança cultural. Ela nos conecta aos nossos ancestrais e nos permite transmitir nossos costumes, crenças e conhecimentos às gerações futuras.

Ao promover a nossa língua materna, fortalecemos a nossa capacidade de contar nossas próprias histórias. Damos voz à nossa cultura, à nossa arte, à nossa música, e criamos um espaço onde as expressões culturais podem florescer. Isso requer educação, enquanto espaço para incutir nas gerações mais jovens a importância da sua língua materna e herança cultural. A aprendizagem da língua materna como caminho para dominarmos outras línguas, que ampliem o nosso cosmopolitismo e nos abram caminhos para dialogarmos com outras culturas e povos, visando a paz e a cooperação para o desenvolvimento da humanidade.

A Cidade Velha não é apenas um tesouro nacional. É uma joia da Humanidade, uma riqueza inestimável que merece ser preservada e celebrada. No entanto, esta missão não pode ser cumprida sem uma estreita colaboração entre governo, comunidades locais, especialistas e organizações internacionais. Também requer maior consciencialização pública, especialmente entre os jovens, para se apropriarem desse património e se tornarem seus guardiões.

Relembro que enquanto se trabalhava a proposta de inscrição da Cidade Velha a Património Mundial, o Governo tomou a iniciativa de elevação de Ribeira Grande de Santiago a Município, em 2005. Depois da inscrição, foram realizados vários projetos estruturantes que reforçaram o valor do sítio, tais como a barragem de Salineiro, com o objetivo de alimentar o lençol freático do município, e que aumentou a produção de plantas fruteiras e permitiu proteger a Cidade Velha de inundações.

A acessibilidade a este lugar histórico foi melhorada, com a asfaltagem da estrada Praia – Cidade Velha. A sua reabilitação facilitou a ligação entre a Cidade Velha, o porto da Praia, o aeroporto e o interior de Santiago. Foi criada também a Escola de Hotelaria e Turismo para melhorar o atendimento turístico em todo o Cabo Verde. No passado mês de julho, a convite do Presidente da CMRGS, visitei o Município e, com muita satisfação, pude observar as obras em curso na Bacia Hidrográfica de São João Batista, de estradas entre Bandan, Belém, São João Batista.

Todos os titulares da pasta da Cultura, desde a Independência de Cabo Verde até hoje, assessorados pelo Instituto do Património Cultural, tiveram uma contribuição decisiva para atingirmos o atual patamar. Várias instituições, de forma constante, continuam a prestar uma contribuição relevante. Volto a destacar as Jornadas Científicas, realizadas pelo Polo da Cátedra UNESCO de História e Património da UniCV, e a Câmara da Ribeira Grande de Santiago, que, felizmente, estão a se tornar numa instituição.

Preservar e promover o nosso Património Mundial é também ousar pensar diferente, ter uma visão prospetiva e holística. Devemos trabalhar para que a Cidade Velha possa ter um Estatuto Administrativo Especial, em nome do custo da “patrimonialidade”, cujo valor universal excecional é um benefício identitário nacional inquestionável, mas para os moradores uma fonte de grandes restrições. Conseguir tal Estatuto, não só é fazer pedagogia na preservação do património, como também marcar a história da Convenção do Património Mundial.

Temos todos de continuar a trabalhar para garantir que a nossa identidade nacional, nutrida pela sua autenticidade e reconhecida pelo seu Valor Universal Excecional, brilhe intensamente na cena mundial. Enquanto Nação, temos a responsabilidade de proteger e promover este património. Isso não se limita apenas à preservação de monumentos e locais históricos, mas também inclui a transmissão dos nossos conhecimentos, da nossa língua crioula e história. Devemos encorajar os jovens a apropriarem-se destas riquezas culturais, a dar-lhes vida e a adaptá-las às realidades contemporâneas.

O património cultural é a expressão de nossa identidade nacional que nos conecta aos nossos antepassados, nossas tradições e nossa terra. Isso nos lembra de quem somos e de onde viemos. Nossas danças, músicas, artes e costumes são tesouros que devem ser preservados e celebrados. Eles são a voz do nosso povo, uma voz que ressoa através das gerações.

Termino com estas palavras do escritor cabo-verdiano Manuel Lopes: “A cultura é a memória de um povo, e sem memória não há futuro“. Por isso, juntos, preservemos a nossa memória, cultivemos a nossa crioulidade e construamos um futuro onde Cabo Verde continue a brilhar, como o farol de diversidade e esperança. Tenho a certeza de que no término destas Jornadas Científico-Culturais, todos os participantes sairão mais enriquecidos em relação à nossa história e sobre a nossa cultura, em suma, com mais conhecimento sobre o património da Cidade Velha e a Identidade Nacional.

Muito obrigado.