Cidade da Praia, 12 de novembro de 2018
Excelências,
Sendo a realização da Justiça uma finalidade sempre presente, sucessivamente renovada em função da dinâmica politica, social e económica, e de enorme fôlego, não deixa de ser, ao mesmo tempo, uma nobre e suprema tarefa que a todos os intervenientes motiva e desafia.
A edificação, consolidação e evolução do edifício normativo e operacional da Justiça reflecte-se em vários domínios cruciais para o Estado de Direito, como sejam a tutela da dignidade da pessoa humana, a salvaguarda dos direitos pessoais, a paz social, a prevenção da criminalidade, a regulação de relações familiares, a garantia do funcionamento das instituições, a resolução de litígios gerados na vida económica, entre outros.
Nos termos previstos na CRCV, o Conselho Superior da Magistratura Judicial, na qualidade de órgão de gestão e disciplina dos Juízes, e o Conselho Superior do Ministério Público, na qualidade de órgão de gestão e disciplina dos magistrados do Ministério Público, apresentam à Assembleia Nacional relatórios anuais sobre a situação da Justiça.
Tendo por referência tais relatórios e a auscultação de responsáveis por instituições que operam no sector da Justiça, no debate parlamentar sobre o estado da Justiça, o Governo e Oposições expõem os seus pontos de vista acerca dos problemas de que padece a Justiça, e ponderam sobre eventuais soluções e sua efetivação.
Os referidos relatórios e debate parlamentar revelam dados e elementos institucionais, emitidos pelos diferentes intervenientes no sector da Justiça, que são naturalmente importantes no tocante à aferição do funcionamento do sistema.
Para além disso, é importante ter presente as várias pronúncias e posições dos utilizadores do sistema, como sejam as posições veiculadas pelas Organizações Patronais e Sindicais, Associações da Sociedade Civil, e pelos Cidadãos em geral.
A percepção relativamente ao chamado “estado da Justiça” resulta, assim, da auscultação de todas as fontes e protagonistas que, de uma forma ou de outra, intervêm na realização da Justiça, ou dela demandam soluções.
E o que podemos concluir é que a justiça cabo-verdiana é muito credível na sua independência e na sua qualidade, mas ainda é muito criticada no que respeita ao tempo que leva para resolver o caso concreto que lhe é submetido, indispensável para a pacificação daquele conflito, mas também da paz social no geral. Isto é, a morosidade continua a ser o grande problema da justiça.
Não podemos ignorar os grandes avanços e os investimentos feitos nessa matéria. Não seria sério da nossa parte!
Na verdade, ao longo dos anos, tem-se acentuado a convicção de que a Justiça é um sector prioritário, em que se deve apostar fortemente, com vantagens para a nossa vida em sociedade, o que conduz a uma crescente mobilização de recursos, especialmente ao nível do Orçamento do Estado, no sentido de se dotar a Justiça de mais e melhores meios para o cumprimento da sua missão constitucional.
Alterações de grande importância na organização dos tribunais, designadamente com a instalação do Tribunal Constitucional, dos Tribunais de Segunda Instância (de Barlavento com sede em Mindelo, e de Sotavento, com sede em Assomada), sendo urgente que se instalem os Tribunais de Pequenas Causas e os Tribunais de Execução de Penas, cuja criação vem sendo exigida por estudos técnico-científicos há pelo menos dezoito anos.
Foram feitos investimentos significativos nos recursos humanos e nos equipamentos e é com natural satisfação que recebemos os anúncios de investimentos em instalações físicas de Tribunais e de serviços de Registos e Notariado que há muito revelavam problemas e anomalias.
Várias alterações legislativas, especialmente nas leis processuais, sempre com a preocupação de, por um lado, fazer prevalecer a realização material da justiça e, por outro, reduzir o tempo para a decisão final, de sorte a que ela chegue ainda a tempo de resolver o concreto problema que lhe justifica a sua existência!
Ainda assim, os cidadãos e as empresas não estão totalmente satisfeitos com o desempenho da justiça, no capítulo que respeita ao tempo razoável para a resolução final dos conflitos.
Isso significa que temos que fazer ainda mais e estou certo de que, mesmo no quadro actual das nossas limitações materiais e financeiras, temos ainda uma margem razoável de progressão. Podemos maximizar o que temos e fazer também algumas intervenções pontuais em certas áreas mais sensíveis, tanto a nível legislativo quanto no de gestão das pessoas e dos processos, de sorte a que o esforço de resolução de uma causa tenha uma relação mais directa com a sua natureza e o seu impacto na vida das pessoas e das empresas.
Agora, parece-nos também tempo não de um olhar geral como no passado recente, quando estivemos a discutir o modelo, mas de um olhar mais microscópico, mais particular sobre as diferentes vertentes do sistema, introduzindo-se correcções que, no conjunto, possam vir a ter um impacto global muito significativo.
Se um processo de trabalho não tiver um tratamento célere na instância recursiva, fica praticamente inútil a tramitação célere imposta à primeira instância. Se uma decisão sobre o efeito de um recurso em segunda instância não for adoptada rapidamente, mas sim em dois ou três anos, fica quase inutilizada a norma que estabelece a regra de execução imediata de uma decisão final adoptada na primeira instância. Se a reclamação contra o Despacho do Relator não for apreciada rapidamente, materialmente subtrai-se a competência do colectivo e adiciona-se mais morosidade ao processo judicial.
Exemplos deste teor podem ser replicados em todas as instâncias e nas mais variadas fases processuais.
Como estão as coisas, uma simples negligência, um descaso, pode bloquear o sistema e pôr em causa a justeza do modelo desenhado e a imagem de maior credibilidade que se vai a pouco e pouco conquistando. O sistema deve rechaçar as anomalias, as areias na engrenagem, que põem em causa o funcionamento geral da máquina.
Estou a falar de princípios e regras sobre a gestão de processos, de métodos e de procedimentos que meçam e controlem o tempo para a prática dos actos processuais, dando alertas e gerando sinais que obriguem a correcção de situações e até a responsabilidade dos eventuais faltosos. Nesta era, os processos não podem ser geridos com recurso à memória dos magistrados e ou dos funcionários e nem aos cadernos de apontamentos.
Nesta era de sofisticadas tecnologias temos que deter métodos mais científicos e sofisticados de gestão dos processos, de medição minuciosa de tempo para a prática de todos os actos processuais, sabendo o que cada um faz, como fez e quanto tempo levou para fazer, responsabilizando cada interveniente pelo que fez ou pelo que deixou de fazer.
Só assim se pode avaliar o mérito de cada um, evitando que a responsabilidade fique diluída no colectivo, obrigando a que um interveniente tenha que suprir a deficiência do outro ou até a pagar pelo incumprimento do outro.
Como ninguém é dono e senhor do processo, as regras de gestão dos procedimentos devem ser transparentes, de forma a que cada um possa assumir as suas responsabilidades, e de modo também a poder-se descortinar com facilidade se a morosidade se deve à negligência da própria parte e do seu advogado, da falta de promoção do Ministério Público, da actuação dos funcionários judiciais, das imposições legais ou se a responsabilidade deve ser assacada à passividade do magistrado.
Só isso também permite introduzir as correcções necessárias!
Ora, há muito que identificamos o caminho para resolver esta situação ao se propor o sistema de Informatização da Justiça (SIJ). Não podemos levar muito mais tempo a colocar esse sistema em pleno funcionamento.
Todos os intervenientes processuais têm fundadas expectativas quanto aos benefícios do SIJ, que foram (e são) patentes em Estados que nos são próximos.
Os benefícios que se anteveem justificam uma forte aposta na finalização do trabalho já desenvolvido ao longo de muitos anos, para que o SIJ responda efectiva e eficazmente às necessidades dos diferentes operadores; paralelamente, exortam-se os futuros utilizadores do SIJ a que, depois de receberem a adequada formação, sejam permeáveis aos novos tempos e ao futuro (presente) que se nos impõe, e que não permaneçam agarrados a velhos rituais e práticas.
Na verdade, e falando com franqueza – mesmo sabendo que a matéria é complexa e no empenho e boa vontade de todos – os cidadãos e as empresas muitas vezes ficam sem perceber as razões por que um processo judicial leva 10 ou 15 anos para ser decidido, ou por que razão 2 ou 3 anos depois de um julgamento ainda não foi proferida a sentença; ou por que razão em 3 processos da mesma natureza, um é julgado no prazo de um ano, outro no prazo de 3 e outro ainda no prazo de 5 ou mais anos. Por que motivo um processo é julgado e decidido em 8 meses e outro de mesmo teor ainda pára na secretaria de um tribunal de primeira instância há dezena de anos; ou na secretaria do Ministério público!
Objetivamente isto põe em causa o princípio de igualdade dos cidadãos, o princípio de tratamento justo e equitativo e o princípio de protecção judiciária do direito em tempo razoável.
Essa disparidade não pode assentar na maior ou menor produtividade dos magistrados ou do desempenho das secretarias! De forma nenhuma! E se assim for, então algo de muito errado existe no sistema! Nunca será tolerável fazer condicionar o tempo de certificação judiciária dos direitos dos cidadãos a uma maior ou menor produtividade dos magistrados ou das secretarias. O sistema deve ter aplicações que permitam corrigir rapidamente as anomalias, os extremos negativos, impondo a regra que permita a protecção, em tempo razoável, cumprindo-se a Constituição de 1992. Impõe-se, pois, instrumentos com capacidade de denunciar rapidamente as anomalias no sistema, recuperando a normalidade.
E aqui o Presidente da República não pode deixar de registar, uma vez mais, os níveis ainda insatisfatórios, quase incipienes, da Inspecção Judicial, muito aquém do que prevê o regime legal aplicável e do que demandam as necessidades do sistema.
Senhor Presidente da Assembleia Nacional,
Senhor Presidente do Tribunal Constitucional,
Senhor Presidente do Supremo Tribunal de Justiça,
Minhas Senhoras e Meus Senhores.
A operacionalização de uma Inspecção Judicial eficaz, que aferisse as condições de trabalho dos tribunais, produtividade dos Juízes, mas também – nisto insistimos há muitos anos – a qualidade dos arestos proferidos, contribuiria certamente para a melhoria global da Justiça em Cabo Verde.
Excelências, Minhas Senhoras e meus Senhores,
Nos dias de hoje em que as redes sociais são o veículo privilegiado de denúncia das situações que os cidadãos consideram graves ou anormais, temos sido confrontados com acusações contra magistrados que nos inquietam por tardar uma resposta rápida, firme e esclarecedora. Resposta essa que só poderá vir do organismo competente e após a devida investigação dos factos publicamente denunciados.
Para garantir a independência da justiça é preciso assegurar que existe responsabilização e que os órgãos criados para garantir essa responsabilização funcionam. Por isso, é urgente que os Serviços de Inspecão judicial funcionem e que os Conselhos Superiores, quer da Magistratura Judicial quer do Ministério Público, sejam cada vez mais rigorosos no apuramento de todas as situações denunciadas pelos cidadãos.
Para nós, este – o problema da responsabilização do sistema no seu todo – é, de há muito, o verdadeiro calcanhar de Aquiles do sistema de justiça no nosso país.
Porém, devemos distinguir de forma clara a crítica fundada e legítima da calúnia e difamação, e repudiar o ataque cerrado que apenas descredibiliza, num esforço de pôr em crise o modelo democrático estabelecido pela Constituição. Os ataques ao sistema, com generalizações abusivas, têm efeitos perversos e apenas servem para descredibilizar os nossos tribunais, o que é muito mau para a justiça, para o país e para a Democracia.
As falhas e os erros devem ser investigados, corrigidos e, se for necessário, os seus autores responsabilizados, como também devem ser responsabilizados aqueles que, de modo infundado, põem em causa os fundamentos do nosso modelo de justiça, administrado pelos tribunais, com advogados, procuradores e juízes, no geral, sérios, qualificados e independentes.
Antes de terminar, gostaria de deixar uma nota que considero imprescindível.
Sendo Cabo Verde um país de parcos recursos, é muito importante que os investimentos sejam certeiros, e que sejam materializados em domínios que representem verdadeiras mais-valias, em infra-estruturas, na criação e no reforço das condições de trabalho, na formação dos magistrados e funcionários, na atribuição de meios para que a Ordem dos Advogados garanta que os Advogados cumpram o seu papel constitucional de colaboradores na administração da Justiça, no desdobramento e na especialização de Tribunais, e na criação de condições para a operacionalização dos meios alternativos de resolução de litígios que permitam aliviar os Tribunais Judiciais. Por outro lado, a produção legislativa, as alterações legislativas, devem obedecer a rigorosos critérios de necessidade, evitando-se sobreposições ou redundâncias legislativas e de «reformas», e, sendo necessárias, por exemplo no âmbito da justiça, processos e funcionamento dos tribunais devem ser adaptadas às novas tecnologias e à necessidade do tempo da Justiça se aproximar mais do tempo que nós vivemos. Não estou a falar obviamente da justiça apressada, uma espécie de justiça popular, sem instrumentos de garantia, mas da justiça que julga em tempo razoável, porque concebida para resolver problemas em tempo útil, não a destempo.
Concluo com sinceros votos, que dirijo a todas as entidades e pessoas que operam no sector da Justiça, de um excelente ano judicial de 2018/2019, com óptimos resultados, a bem da Justiça.