PR solicita reapreciação à Assembleia de Diploma de Fundo Soberano

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O Presidente da República solicitou, através de uma carta enviada ao Presidente da Assembleia Nacional, a reapreciação da proposta de alteração do artigo 21.º da Lei n.º 65/IX/2019, de 14 de agosto, que cria o Fundo Soberano de Garantia do Investimento Privado. Na carta datada de 04 de janeiro, o Chefe de Estado sublinha algumas reservas em relação à efetividade e utilidade da transferência das responsabilidades de fiscalização do Fundo Soberano de Garantia do Investimento Privado do Banco de Cabo Verde (BCV) para a recém-criada Auditoria Geral do Mercado de Valores Mobiliários (AGMVM).

Segundo entendimento da Presidencia da República, entre outras razões, “na verdade, o BCV já dispõe de competências legais de supervisão, nomeadamente em termos de matéria contraordenacional[1], iguais ou até superiores às que julgo pretender o Governo com a “revisão dos aspetos do regime contraordenacional dos Organismos de Investimento Coletivo, no sentido de garantir o respeito pelas normas previstas no respetivo regime jurídico.”

José Maria Neves defende assim que “por outro, o BCV já vem exercendo a supervisão das instituições por ele reguladas e supervisionadas há já várias décadas, pelo que já acumulou um leque bastante vasto de experiências vivenciadas e de expertise, para além de dispor de muito mais recursos (humanos, materiais, tecnológicos, etc.) do que a AGMVM”.

“Não menos importante”, acrescenta o Presidente Neves, “é também o facto de a AGMVM, segundo o artigo 4.º do Código do Mercado de Valores Mobiliários[2], funcionar na dependência do Governador do Banco de Cabo Verde, não obstante gozar de autonomia funcional e administrativa. Ou seja, não goza do mesmo grau de independência que o BCV, para além de depender financeiramente desta instituição para poder funcionar.

Nisso, conclui o Chefe de Estado que, “ancorado na doutrina constitucional segundo a qual, antes da decisão formal de promulgação ou veto, pode o Presidente da República partilhar as suas reservas com a Assembleia Nacional, devolvo a Lei sujeito à promulgação, na expetativa de uma melhor análise e ponderação.”.

Leia a carta, na íntegra, no site da Presidência da República, aqui:

 

                                                                                            Praia, 04 de Janeiro de 2022

 

Excelência,

 

Recebi da Assembleia Nacional, para promulgar e ser publicado como Lei, o ato legislativo que altera o artigo 21.º da Lei n.º 65/IX/2019, de 14 de agosto, que cria o Fundo Soberano de Garantia do Investimento Privado.

Analisado o referido diploma, surgiram algumas reservas que, cordialmente, partilho com V. Exa.ª.

A Lei n.º 60/IX/2019, de 29 de julho, aprovou a extinção do Inter­national Support For Cabo Verde Stabilization Trust Fund (CVDTF ou Trust Fund), criado pela Lei nº 69/V/98, de 17 de agosto, e a extinção dos Títulos Consolidados de Mobilização Financeira (TCMF).

Na sequência da extinção do Trust Fund e dos TCMF foram criados dois Fundos Soberanos, sendo um deles o Fundo Soberano de Garantia do Investimento Privado, FSGIP, criado pela Lei n.º 65/IX/2019, de 14 de agosto.

Ao FSGIP atribuiu-se a natureza financeira, pelo que se rege pela Lei n.º  65/IX/2019, de 14 de agosto, pela legislação financeira e, subsidiariamente, pelo Código das Empresas Comerciais.[1]                                                                                                                                  …/…

 

Sua Excelência

Dr. Austelino Tavares Correia

Presidente da Assembleia Nacional

Praia

 

O FSGIP tem por objeto garantir a emissão de valores mobiliários, em particular títulos de dívida, por empresas comerciais privadas de direito cabo-verdiano em mercados regulamentados para financiamento dos respetivos investimentos. Tem como finalidade acessória a concessão de garantias a operações financeiras de natureza equivalente de que sejam beneficiárias empresas comerciais privadas de direito cabo-verdiano[2].

Pelo facto de a concessão de garantias ser uma atividade financeira[3], prevê-se que o FSGIP seja supervisionado pelo Banco de Cabo Verde (BCV), devendo observar as regras prudenciais e os regulamentos estabelecidos por lei ou pelo banco central para as instituições financeiras, nomeadamente as instituições de crédito[4].

Ora, com a alteração introduzida no artigo 21.º da Lei n.º 65/IX/2019, de 14 de agosto, pretende-se que o FSGIP passe a ser supervisionado pela Auditoria Geral do Mercado de Valores Mobiliários (AGMVM), em vez do BCV.

Essa alteração decorre, segundo consta do preâmbulo do diploma em apreço e que aqui citamos ipsis verbis, da política do Governo “de reforma do Regime Jurídico dos Organismos de Investimento Coletivo, que tem como principal objetivo proceder à sua atualização, no que toca ao papel e aos deveres dos agentes do mercado, nomeadamente entidades gestoras, depositário, comercializadores e auditores, de forma a rever os aspetos do regime de mera ordenação social, relativo aos organismos de investimento coletivo, no sentido de tipificar as regras gerais de natureza substantiva, que se revelem adequadas a garantir o respeito pelas normas previstas no Regime Jurídico dos Organismos de Investimento Coletivo, bem como atribuir à Auditoria do Mercado de Valores Mobiliários (AGMVM) a competência para processar contraordenações, aplicar as respetivas coimas e sanções acessórias, assim como as medidas de natureza cautelar previstas no Regime Jurídico dos Organismos de Investimento Coletivo.”

Neste quadro, ainda de acordo com o referido preâmbulo “é de todo relevante, reconhecida a mais/valia da AGMVM, decorrente das reformas em curso, enquanto entidade com competência em matéria de Organismos de Investimento Coletivo em valores mobiliários, reforçar a credibilidade das garantias a prestar pelo FSGIP, sob supervisão da AGMVM, na plenitude e extensão dos seus poderes legais, consagrados no Código do Mercado de Valores Mobiliários.”

Pelo que eu entendi da leitura das supramencionadas citações, não me parece que as razões apresentadas justificam a transferência da competência de supervisão do FSGIP, do BCV para a AGMVM. Na verdade, a não ser que sejam melhor explicitados, não resulta claro quais são os reais motivos de alteração do status quo. Particularmente, não se explica por quê que o FSGIP veria a sua supervisão reforçada, caso fosse a AGMVM a entidade responsável para o efeito.

Na verdade, o BCV já dispõe de competências legais de supervisão, nomeadamente em termos de matéria contraordenacional[5], iguais ou até superiores às que julgo pretender o Governo com a “revisão dos aspetos do regime contraordenacional dos Organismos de Investimento Coletivo, no sentido de garantir o respeito pelas normas previstas no respetivo regime jurídico.”  

Por outro, o BCV já vem exercendo a supervisão das instituições por ele reguladas e supervisionadas há já várias décadas, pelo que já acumulou um leque bastante vasto de experiências vivenciadas e de expertise, para além de dispor de muito mais recursos (humanos, materiais, tecnológicos, etc.) do que a AGMVM.

Não menos importante, é também o facto de a AGMVM, segundo o artigo 4.º do Código do Mercado de Valores Mobiliários[6], funcionar na dependência do Governador do Banco de Cabo Verde, não obstante gozar de autonomia funcional e administrativa. Ou seja, não goza do mesmo grau de independência que o BCV, para além de depender financeiramente desta instituição para poder funcionar.

Julgo que o legislador, neste caso a Assembleia Nacional, de inicio andou muito bem em reiterar uma competência do BCV, uma vez que já lhe é própria, de supervisionar o FSGIP, considerando não só a dimensão do Fundo, como também a sua peculiaridade.

Na verdade, os Fundos Soberanos, com origem nos anos 50 do século passado, têm sido definidos como um conjunto de ativos de propriedade do Governo/Estado, sendo que os recursos com que são alimentados são, designadamente, provenientes de reservas naturais (petróleo, gás, etc.) e internacionais (divisas), de superavits fiscais ou de recursos oriundos de programas de privatização, para a sua aplicação/rentabilização nos mais diversos domínios.

Ora, os dois Fundos Soberanos criados em Cabo Verde, o FSGIP e o Fundo Soberano de Emergência (FSE) têm uma particularidade, eventualmente única no mundo: os seus recursos são provenientes de contrapartidas de dívidas de terceiros. Ou seja, foram os recursos do Trust Fund (ativos) cujas contrapartidas (passivos) eram os TCMF detidos pelo BCA e BCV que foram transferidos para o FSGIP (100 milhões de euros) e o FSE (10 milhões de euros), estando, ainda, por esclarecer a regularização das dívidas do Estado junto do BCA e do BCV, no valor de cerca de 11 milhões de contos.

Assim, considerando a natureza, a dimensão e a peculiaridade do FSGIP, entendo que o mesmo deve continuar a ser supervisionado pelo BCV, enquanto Banco Central da República de Cabo Verde, regulador e supervisor do sistema financeiro nacional, pelas garantias que esta instituição dá relativamente à qualidade e rigor da supervisão das instituições financeiras. O BCV, também, está melhor posicionado para o acompanhamento da operacionalização de um instrumento financeiro tão complexo como é o FSGIP.

Pelo que, ancorado na doutrina constitucional segundo a qual, antes da decisão formal de promulgação ou veto, pode o Presidente da República partilhar as suas reservas com a Assembleia Nacional, devolvo a Lei sujeito à promulgação, na expetativa de uma melhor análise e ponderação.

Ciente de que o assunto merecerá a melhor atenção de V. Exa., creia, Senhor Presidente, no protesto da minha mais elevada consideração.

José Maria Pereira Neves

 

[1] Vd. artigo 6.º da Lei n.º 65/IX/2019, de 14 de agosto.

[2] Vd. artigo 3.º da Lei n.º 65/IX/2019, de 14 de agosto.

[3] Vd. alínea b) do n.º 2 do artigo 20.º da Lei n.º 61/VIII/2014, de 23 de abril.

[4] Vd. artigo 21.º da Lei n.º 65/IX/2019, de 14 de agosto.

[5] Vd. Lei n.º 61/VIII/2014, de 23 de abril, que define os princípios orientadores e o quadro normativo de referência do sistema financeiro, e Lei n.º 62/VIII/2014, de 23 de abril, que regula as atividades das instituições financeiras.

[6] Aprovado pelo Decreto-Legislativo n.º 1/2012, de 27 de janeiro.