Discurso do Senhor Presidente da República, por ocasião das comemorações do 25º Programa Anual Comemorativo de Martin Luther King, Jr. e Amílcar Cabral – UMASS Boston- EUA

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Senhor Chancellor Marcelo Suarez-Orozco

Senhor Professor Jemadari Kamara

Senhora Senadora Liz Miranda

Senhora Conferencista Charlayne Hunter-Gualt

Senhor Embaixador de Cabo Verde

Senhoras e Senhores Professores e Investigadores

Senhoras e Senhores Estudantes

Minhas Senhoras e meus Senhores,

 

Cumprimento-vos a todas e a todos com muita amizade e o calor próprio das ilhas de Cabo Verde. Na verdade, venho de muito longe, mas quis estar aqui hoje convosco.

Devo dizer-vos que é para mim, uma honra e um privilégio, participar neste 25º Programa Anual Comemorativo de Martin Luther King, Jr. & Amílcar Cabral, celebrando a vida e a obra destas duas figuras marcantes do século XX.

Este 25º aniversário coincide com mais duas datas emblemáticas: o 60º aniversário da célebre Marcha sobre Washington e os 50 anos do assassinato de Amílcar Cabral.

E não desejo continuar sem antes render a minha vibrante homenagem ao Departamento de Estudos Africanos desta Universidade por este feito extraordinário que é o de, ao longo de meio século, organizar este espaço de reflexão e debate sobre Martin Luther King e Amílcar Cabral, promovendo o estudo do pensamento e da obra deles, estimulando conhecimento e mantendo vivo o seu exemplo. Repito: isso é extraordinário.

Com efeito, para que os legados perenes, atuais e estimulantes de Martin Luther King e de Cabral passem de geração em geração é fundamental que o exemplo de dedicação e de entusiasmo do Africana Studies Department desta UMass seja acarinhado e seja replicado por outras instituições aqui nos Estados Unidos, mas também em Cabo Verde e noutras paragens do Mundo.

Quero ainda referir alguns factos que são importantes para mim e para os cabo-verdianos em geral.

 

 

Esta é uma Universidade com uma tradição de Professores cabo-verdianos ou de ascendência cabo-verdiana, mas também pessoal administrativo, alguns dos quais fizeram parte do comité de celebração de Martin Luther King e Amilcar Cabral.

 

Mas esta é também a Universidade pioneira na adoção de um programa de estudos de Crioulística. Nos curricula do Departamento de Estudos Africanos existe o Kursu di Lingua Kabuverdianu, da mesma forma que funciona o Instituto de Verão de Língua Cabo-Verdiana.

Saúdo-vos por esse trabalho meritório!

 

E saúdo-vos igualmente pelos programas de apoio aos alunos cabo-verdianos tanto durante o ano letivo como no período das férias de Verão. Programas que, de todo o modo, precisam ser reforçados. Já pelo censo de 2016, havia em Massachusetts 65 mil cabo-verdianos, número que tem crescido a cada ano. Parece-me que seria magnífico se a UMass-Boston elegesse esses cabo-verdianos como população-target na mobilização de docentes e de alunos.

Desejo, nesta circunstância, dizer-vos que nos finais deste ano acolheremos em Cabo Verde a Cimeira das Nações Crioulas. Enquanto a primeira Nação Crioula do Mundo, queremos essa mobilização global para o enaltecimento, valorização e promoção do que nos distingue e constitui o nosso contributo impar para a Humanidade. Mas queremos também contar com o contributo das instituições, dos Professores e Investigadores que, tal como acontece nesta Universidade, estudam e ensinam a nossa Cultura, em particular o Crioulo.

Julgo ser também importante para este espaço académico e cientifico saber que sou patrono de uma iniciativa internacional visando o reconhecimento da Crioulidade como Património Universal pela UNESCO.

 

Senhor Chancellor,

Senhor Professor,

Minhas Senhoras e meus Senhores,

Dono de uma oratória ímpar e comovente, que agregava multidões, Martin Luther King pronunciou, nessa Marcha de 1963, o famoso discurso I have a dream

 

(Eu tenho um sonho). Quanto a Amílcar Cabral, há que destacar a sua extraordinária capacidade de comunicação, conseguindo explicar conceitos muito complexos de forma muito simples, para pessoas sem qualquer instrução formal, como era a maioria dos camponeses da Guiné Bissau, seus companheiros na luta de libertação nacional. Cabral e Luther King, dois Oradores notáveis.

Ambos, contemporâneos e visionários, cada um de um lado do Atlântico, sonharam, na década de 50 do século passado, o que parecia impossível. Recorde-se que, nessa altura, nos Estados Unidos da América, a discriminação racial era uma prática normal e legalizada. Ou seja, das manifestações em defesa de Rosa Parks contra a segregação nos transportes públicos, ao boicote dos autocarros de Montgomery, até às conquistas dos direitos civis e à chegada de negros à presidência ou à vice-presidência do país, foi percorrido um longo caminho.

Tal foi, igualmente, o desafio de Cabral, que ainda antes da vaga das “independências africanas”, já sonhava com a independência da Guiné e Cabo Verde, o que veio a tornar-se realidade em meados da década de setenta.

E ambos enfrentaram obstáculos aparentemente intransponíveis, travando uma batalha de David contra Golias. Luther King lutou para, nas suas próprias palavras, exigir da América o pagamento da nota promissória, assinada aquando da Declaração da Independência, mas que para os negros se revelara ser um “cheque sem fundo”.  De facto, apesar das belas palavras da Constituição, garantindo direitos, liberdade e igualdade, a realidade é que se sucederam séculos de segregação racial e de violência contra os negros.

Lutar contra o segregacionismo, pelos direitos civis e pela justiça racial era exigir mudanças nas leis e brigar contra o interesse de muitos estados norte-americanos e contra grupos radicais, como a Ku Klux Klan, que desde o século XIX defendiam a segregação racial, praticavam a violência extrema contra os negros e intimidavam aqueles que se manifestavam pela igualdade entre os norte-americanos.

Cabral ousou desafiar o todo-poderoso império colonial português e a sua “sagrada” integridade territorial. É de mencionar que nos territórios continentais africanos imperava, nessa altura, a Lei do Indigenato, que conferia um estatuto de cidadão inferior às populações indígenas, e lhes reservava um tratamento indigno, degradante e subjugante, estatuto que só seria abolido em 1961.

Tanto o vencedor do Prémio Nobel da Paz de 1964, como o herói das independências da Guiné e de Cabo Verde, lutaram pela dignidade e contra a

 

injustiça. Luther King afirmara mesmo que “a injustiça em qualquer lugar é uma ameaça à justiça em todo o lugar”. Nessa altura, e no vasto território norte-americano, a injustiça, as perseguições e a violência policial campeavam. Ele e a sua família vivenciaram a segregação, o que marcou a sua vida e determinou o seu percurso, tornando-se num dos principais líderes negros dos Estados Unidos.

 

Amílcar Cabral, imbuído de espírito humanista, militou contra a fome e a pobreza, os abusos e discriminações, pela dignidade humana, liberdade, igualdade e justiça social. Afirmara que não queria continuar a presenciar a indignidade de guineenses a serem açoitados, e cabo-verdianos a morrerem de fome. Para pôr termo a esta situação, Cabral tinha a firme convicção de que só com a conquista da independência isso seria possível, ou seja, só fora do quadro colonial.

Dr. King liderou uma luta baseada na não-violência, opondo-se de forma pacífica contra a segregação racial, encabeçando passeatas e manifestações ordeiras, tendo unicamente como arma os seus discursos brilhantes, que agregavam grandes multidões. Defendia essa opção com firmeza: “Devemos travar sempre a nossa luta no plano elevado da dignidade e da disciplina. Não devemos permitir que o nosso protesto criativo degenere em violência física”.

O líder africano, por seu turno, sempre quis que a independência fosse o corolário de um processo pacífico e negociado com as autoridades coloniais portuguesas. Desde o início do seu engajamento com esta causa, ou seja, desde os anos 50, esta inequívoca disposição para o diálogo, que foi reiteradamente manifestada, contou com a rejeição mais sistemática do regime colonial, que era quem deveria ser o interlocutor, e que optou por recorrer à violência e aos massacres. O massacre de Pidjiguiti, em 1959, é apenas o exemplo mais conhecido.

Imposta a luta de libertação nacional como um caminho inevitável para a independência, Cabral manteve-se sempre disponível para dialogar e negociar. Soube sempre distinguir o povo português do regime colonialista. Defendia que, após a independência, deveriam ser construídas as mais sólidas e especiais relações de cooperação e amizade entre os nossos países e a potência colonizadora.

Da mesma forma, a luta de Luther King contra a segregação racial não tinha como alvo a população branca, como deixou bem claro no seu discurso no Lincoln Memorial: “A maravilhosa e nova militância que tomou conta da comunidade negra não nos deve levar a desconfiar de todos os brancos, pois muitos dos nossos irmãos brancos, como demonstra a sua presença hoje aqui, já chegaram à

 conclusão de que o seu destino está ligado ao nosso e que a sua liberdade está indissociavelmente ligada à nossa”. E reforça, concluindo, “não podemos caminhar sozinhos”.

No seu derradeiro e também histórico discurso, em Memphis, horas antes de ser assassinado, King recorreu a uma imagem bíblica, afirmando ter visto a “Terra Prometida”. De facto, depois de centenas de anos de travessia no deserto da segregação e da injustiça, os negros norte-americanos tinham chegado às fronteiras da terra prometida, nesse abril de 1968.

Graças à luta contra a segregação racial, liderada por King, sucessivamente os negros começaram a poder ter acesso a parques públicos, bibliotecas e lanchonetes, e depois foi adotada a Lei dos Direitos Civis. É o início da concretização do sonho de uma sociedade onde negros e brancos pudessem viver harmoniosamente, com todos os americanos a serem julgados não pela cor da pele, mas pelas suas ações, pelo seu caráter, conforme seu desejo, na célebre Marcha de 23 de agosto de 1963:

“Tenho um sonho que um dia, nas colinas vermelhas da Geórgia, os filhos de antigos escravos e os filhos de antigos proprietários de escravos poderão sentar-se juntos à mesa da fraternidade. Tenho um sonho que um dia o estado do Alabama (…) será transformado de modo a ser possível ver meninos e meninas negros de mãos dadas com meninos e meninas brancos, caminhando juntos como irmãos e irmãs”.

Quanto a Amílcar Cabral, e no que a Cabo Verde diz respeito, o primeiro objetivo foi conseguido em 1975, com a Independência Nacional. Nesse momento de partida, fomos considerados por muitos como um país improvável, mas hoje somos um estado em desenvolvimento, com uma democracia representativa que funciona normalmente, uma ética na governação e com a maioria dos cabo-verdianos a ver as suas condições de vida a melhorar.

No entanto, em relação a estes dois líderes, a pergunta que podemos fazer é se os seus sonhos foram todos realizados, ou se nos encontramos entre o sonho e a utopia. No caso dos Estados Unidos, não se pode afirmar que foi totalmente eliminado o racismo ou a violência racial. Lamentavelmente, episódios como o que resultou na morte de George Floyd ainda acontecem com alguma frequência. A luta pela justiça social é uma luta atual na América.

Em relação ao sonho de Cabral, constatamos que ainda permanecem a pobreza, as desigualdades sociais e as desigualdades Norte-Sul, que têm alimentado as vagas de migrações, em condições absolutamente indignas. Por outro lado, algumas das experiências de independências africanas podem ser consideradas, infelizmente, como dececionantes. Mas no geral, estamos convencidos de que valeu a pena o sonho destes dois líderes, e que devemos nos empenhar para que se cumpra a totalidade das suas aspirações.

Temos de continuar a sonhar com um mundo melhor e fazer tudo para realizar os nossos sonhos, para haver mais vida, mais liberdade e mais felicidade conforme a nota promissória assinada pelo pai da independência Americana, e conforme o compromisso assumido pela geração de Cabral.

Reafirmo que a melhor forma de honrarmos a memória e o legado dos homenageados é continuarmos a lutar pelos valores por eles defendidos, nomeadamente, pela dignidade das pessoas e pela honestidade na governação. A luta que eles travaram, as razões por que lutaram e morreram, continuam atuais, tornando seus nomes imorredouros. Martin Luther King e Amílcar Cabral foram intérpretes dos maiores anseios dos negros americanos e dos povos colonizados africanos. Com Martin Luther King e Amílcar Cabral a Humanidade deu passos gigantescos. Cabe-nos, hoje, saber beber do seu exemplo e seguir em frente.

Muito Obrigado!