Discurso de Sua Excelência, o Presidente da República, José Maria Neves, por ocasião da abertura do Ano Judicial 2024/25

11

O EQUILÍBRIO DO PODER E A DEFESA DA LIBERDADE

Minhas Senhoras e Meus Senhores,

É com elevado sentido de Estado que o Presidente da República participa neste momento sublime da vida nacional, que é a Abertura do Ano Judicial. Agradeço, pois, o honroso convite de Sua Excelência o Senhor Presidente do Supremo Tribunal de Justiça, Venerando Juiz, Dr. Benfeito Mosso Ramos.

Saúdo, com a devida vénia, os magistrados, os advogados e todos os servidores da justiça.

Vive-se no mundo uma policrise marcada pelas alterações climáticas, migrações, guerras geo-estratégicas, conflitos, ruturas constitucionais, extremismos políticos e ameaças às liberdades e à democracia. Ninguém, mesmo os países com as mais antigas tradições democráticas e mais desenvolvidos, está a salvo das já referidas crises e ameaças. 

Só com instituições políticas e económicas fortes e inclusivas, as sociedades conseguirão resistir a tantas fissuras nas placas tectónicas das ordens regionais e mundial e aos movimentos iliberais e autoritários, que enfraquecem a democracia e ameaçam as liberdades fundamentais. De entre tais instituições, destacam-se os tribunais. Temos, pois, de continuar, adentro do processo de consolidação do Estado de Direito Democrático, a investir em tribunais independentes e fortes, enquanto garantes dos direitos fundamentais e, conseguintemente, das liberdades, da democracia e do desenvolvimento durável.

Sem leis não há liberdade, já diziam os mais antigos. Que o Estado faça leis justas e haja capacidade, inteligência e sabedoria para aplicá-las com equidade, oportunidade e eficácia. Só uma justiça transparente e célere garante a paz social, a competitividade, o crescimento económico e o desenvolvimento humano.

Os investimentos na justiça – recursos humanos, meios financeiros, leis, estruturas organizacionais, instalações e equipamentos – são essenciais para a remoção dos obstáculos que ainda persistem e constrangem todo o sistema. Mas não é tudo. O funcionamento de qualquer sistema sociotécnico aberto como é o caso da justiça depende, em muito, dos hábitos mentais, das normas e regras, das atitudes e das interações entre os principais stakeholders. Neste como noutros setores são essenciais a vontade de vencer os obstáculos e a cultura de resultados.   

Pela sua importância para o Estado de Direito Democrático, torna-se imprescindível um alargado entendimento entre as forças políticas, envolvendo todos os atores relevantes, designadamente os servidores, visando a construção de um pacto de regime para o setor da justiça. Em 2010, foi possível um amplo consenso entre os partidos políticos para a Revisão Constitucional, com especial incidência para o setor, abrindo, assim, caminho para a modernização da gestão das magistraturas, a reorganização dos tribunais e a amplas reformas legislativas e organizacionais, visando uma melhor justiça, mais célere, mais equitativa e mais oportuna. A instalação do Tribunal Constitucional, a criação dos Tribunais de Relação e a autonomização do Conselho Superior da Magistratura Judicial trouxeram, com o tempo, ganhos importantes com impactos positivos em todo o sistema de justiça.

Devo destacar o elevado desempenho do Tribunal Constitucional e o seu inestimável contributo para a criação de uma cultura da constituição e defesa da dignidade da pessoa humana.

Os Relatórios dos Conselhos Superiores da Magistratura Judicial e do Ministério Público apontam, globalmente, alguns ganhos, ainda que com desempenhos muito diferenciados, na redução das pendências e no combate à morosidade. É muito importante continuar esse esforço a todos os níveis, com aumento de meios, melhorias da organização e gestão e do desempenho e produtividade individual e geral.  Os recursos são fundamentais nesse processo, mas temos de ter consciência de que eles não são ilimitados e que muitas das mudanças, inovações e respostas dependem sobretudo dos valores, das atitudes e do desempenho de cada um.

Em Cabo Verde, aliás, dado à dramática escassez de recursos, temos de aprender, a todos os níveis e domínios, a fazer muito com pouco, melhorando a eficiência da execução e a eficácia dos resultados.

Tenho acompanhado com especial atenção e interesse as medidas de política adotadas pelo Governo, em estreita articulação com os Conselhos Superiores, que constituem ganhos para o sistema de justiça, a consolidação do Estado de Direito Democrático, a melhoria do ambiente de negócios, a competitividade da economia e o crescimento inclusivo.

Destaco a criação do Instituto de Modernização e Inovação da Justiça (IMIJ, I.P.), do Portal da Justiça e de plataformas digitais como o Sistema de Informação da Justiça (SIJ), o Sistema de Informação e Gestão Prisional (SIGP), o Sistema de Informação Eleitoral (SIE), os sistemas de vídeo conferência e de vigilância eletrónica. Espero a implementação efetiva desses serviços, de modo a garantir processos transformacionais a nível da justiça, melhor integração e articulação de serviços, tramitação eletrónica de processos, permitindo mais celeridade, mais transparência e melhor acessibilidade e prestação de serviços finais de qualidade aos cidadãos.

Realço, ainda, a implementação em curso dos desde há muito anunciados mecanismos de mediação e resolução de conflitos. Que sejam executados com sucesso, proporcionando, desse modo, alternativas para a resolução de conflitos.

A este propósito, abono no sentido da criação de mecanismos institucionais para a prevenção e resolução de conflitos nas comunidades, mobilizando pessoas idóneas e sábias para a reinvenção de ambientes comunitários de amizade social e de não violência. A criação de Conselhos da Paz nas comunidades e a atribuição à Polícia Nacional de competências para resolver pequenos conflitos contribuiriam sobremaneira para reduzir a quantidade de processos junto dos tribunais tradicionais.

A justiça é um corpo vivo, um espaço de criação e de contínua aprendizagem, que requer inteligência adaptativa e adequação permanente. A qualidade das decisões depende, em grande medida, do nível de formação dos magistrados e de todos os servidores da justiça. Neste mundo difícil e complexo, são fundamentais o estudo e a aprendizagem contínuos, procurando mais sofisticação, mais celeridade, mais qualidade e mais eficácia do processo de formação das decisões. Assim, regozijo-me coma a criação do Centro de Estudos Jurídicos e Judiciários aberto a todos os servidores da justiça e orientado para a formação, a investigação e melhoria global dos serviços judiciais. Há que destacar, ainda, as escolas de direito, a investigação jurídica e a produção académica como importantes contributos para a formação de juristas, a jurisprudência e a qualidade das decisões.

Espero que as iniciativas legislativas em curso na Assembleia Nacional sejam aprovadas o mais rapidamente possível, criando um ambiente legal que garanta uma melhor adequação do sistema às demandas e exigências dos tempos atuais. Referi-mo, designadamente, à Lei de Organização Judiciária, que redefine a competência dos tribunais e prevê a criação de Juízos de Instrução e Administrativos, a Lei de Inspeção dos Tribunais e do Ministério Público, a Lei dos Estatutos dos Magistrados e a Lei Orgânica do Conselho Superior da Magistratura Judicial.

O rápido desenvolvimento das tecnologias informacionais, sobretudo da Inteligência Artificial (AI) e das redes sociais, tem consequências disruptivas para o relacionamento entre o Estado e a Sociedade Civil, o funcionamento dos serviços públicos e a dinâmica de inter-relação entre os serviços da justiça e os cidadãos. Nesta era da infocracia, as redes sociais estão a debilitar as instituições tradicionais de intermediação, como os partidos políticos, os sindicatos, as universidades, as igrejas, a imprensa … e a reforçar o individualismo e o curto prazismo. Parafraseando Daniel Innerarity, vivemos tempos gasosos, em que tudo é instantâneo. Não há paciência e discernimento para a discussão e a acumulação de experiências, de conhecimentos e de sabedoria. A esfera pública, tal como entendida por Habermas, está a segmentar-se e a desestruturar-se. Neste contexto complexo e difícil, os serviços judiciais têm de encontrar novos e inovadores mecanismos de comunicação com a opinião pública. Os Tribunais e os serviços judiciais em geral estarão cada vez mais sob o escrutínio dos cidadãos e da sociedade civil, mas também sob a pressão de fake news, verdades alternativas e um certo populismo digital e populismo penal. Não podem claudicar perante tais fenômenos. Pelo contrário, devem agir para comunicar melhor com a sociedade, contribuindo para o aumento da literacia jurídica e a compreensão do funcionamento da justiça.

É preciso, outrossim, proteger os dados dos cidadãos, prevenir e punir o cibercrime, e criar as condições para que a ciência e a tecnologia sejam colocadas ao serviço do bem comum e da não disseminação do ódio, da violência e da criminalidade.

Se é verdade que precisamos de Estado forte, é fundamental, por outro lado, que a sociedade seja autónoma e também forte para conter os excessos do Estado e moldá-lo para responder com efetividade às demandas e às exigências das pessoas.

Acemoglou e Robinson, Prémios Nobéis da Economia de 2024, escreveram que a prosperidade das nações depende da inclusividade das instituições políticas e económicas e o futuro da liberdade do equilíbrio entre o Estado e a sociedade. Em Cabo Verde, há uma excessiva dependência dos cidadãos e da sociedade do Estado. Esse desequilíbrio cria um ambiente de subjugação e medo que prejudica o pleno exercício das liberdades civis e políticas. Insisto, pois, na necessidade de desestatizarmos a sociedade, de restabelecermos os equilíbrios entre o Estado e a Sociedade e defendermos as liberdades, a democracia e o Estado de Direito.

Permitam-me que vos diga o seguinte e quero ser absolutamente claro: adentro da estratégia do reforço da inclusividade das instituições é essencial que se respeite o princípio republicano e democrático da renovação de mandatos. Felizmente, em relação aos órgãos eleitos diretamente pelo povo, nesse quesito, temos cumprido rigorosamente, realizando, periodicamente e dentro dos prazos constitucionais, eleições autárquicas, legislativas e presidenciais. A coberto do princípio de que os titulares de diferentes órgãos constitucionais não eleitos diretamente devem manter-se em funções até à sua substituição, para garantir o normal funcionamento dos mesmos, muitos desses titulares têm visto os seus mandatos prorrogados, em alguns casos por vários anos, por falta de consensos entre os atores políticos ou por omissão de quem tem a competência constitucional de propor.  

O meu entendimento, respeitando as posições divergentes, é o de que em Estados republicanos e democráticos o princípio que deve prevalecer é o de renovação do mandato. A permanência no cargo até à substituição deve ser entendida como garantia de funcionamento normal das instituições, num quadro de transitoriedade e precariedade, por um tempo razoável, geralmente para acomodar transições de governo, atrasos de ordem burocrática ou outros da mesma natureza.

Assim, mantenho o meu apelo para um esforço dos diferentes atores políticos e órgãos de soberania, visando os consensos necessários para a renovação dos mandatos já caducados há algum tempo de titulares de vários órgãos constitucionais.

Nestes tempos disruptivos e caóticos devem, sobretudo, imperar a prudência, a serenidade e a sabedoria.

Desejo-vos a todos, um bom ano judicial.

Muito obrigado pela vossa atenção!