O Presidente da República, José Maria Neves, presidiu a cerimónia de abertura da Conferência “Jornalismo sob Vigilância – Mais Liberdade e Melhor Democracia” promovida pela Autoridade Reguladora para a Comunicação Social (ARC) que aconteceu esta manhã, aludindo ao dia 3 de Maio, Dia Mundial da Liberdade de Imprensa. Na sua intervenção, o Chefe de Estado enaltece a importância e o desempenho dos jornalistas como fator-chave para o reforço da Democracia.
Neves sublinha, igualmente, o desempenho meritório da ARC, enquanto reguladora para a comunicação social, para além de chamar a atenção para os desafios da sustentabilidade, sobretudo da comunicação social privada, da autocensura e quaisquer aspetos que possam pôr em causa a Liberdade de Imprensa.
Outro aspeto realçado tem a ver com a “fulanização” do debate político e aos “fake news” que circulam nas redes sociais, bem como a vulgarização da difamação e “assassinato do caráter” das pessoas, sob anonimato, inclusive nos comentários nos jornais online.
Leia e/ou ouça o discurso na íntegra no sítio web da Presidência da República, aqui:
Discurso de Sua Excelência o Presidente da República, Dr. José Maria Pereira Neves, na Abertura da Conferência Nacional alusivo ao Dia Mundial da Liberdade de Imprensa 2022.
Salão Beijing, 03 de maio de 2022
Senhor Presidente do Tribunal Constitucional,
Senhor Secretário de Estado Adjunto do Primeiro Ministro,
Senhor Chefe da Casa Civil da Presidência da República,
Senhora Coordenadora Residente do Sistema das Nações Unidas,
Senhoras e Senhores Embaixadores e Representantes das Organizações Internacionais,
Senhora Presidente do Conselho Regulador da ARC,
Senhor Presidente da AJOC,
Senhoras e Senhores Conferencistas,
Senhores Representantes de Órgãos de Comunicação Social,
Senhoras e Senhores Jornalistas,
Ilustres Convidados,
Minhas Senhoras e meus Senhores,
Estimadas Amigas e Caros Amigos,
Permitam-me que comece por agradecer à Senhora Presidente do Conselho Regulador da Agência Reguladora para a Comunicação Social pelo convite que me endereçou para presidir a esta Cerimónia de Abertura da Conferência Nacional Alusiva ao Dia Mundial da Liberdade de Imprensa 2022. Confesso que foi com grande prazer, Senhora Dra. Arminda Barros, que aceitei presidir este ato. Ao mesmo tempo, aproveito o ensejo para felicitá-la por esta oportuna e feliz iniciativa, fazendo votos para que seja uma boa oportunidade para se refletir sobre os grandes desafios da comunicação social cabo-verdiana e que sejam alcançados os objetivos preconizados.
Consintam, Minhas Senhoras e meus Senhores, que me dirija especialmente às Senhoras e aos Senhores Jornalistas, neste dia em que se assinala o Dia Mundial da Liberdade de Imprensa. São estas mulheres e estes homens que já colocaram Cabo Verde no top ten mundial, graças ao profissionalismo, à ética, à autonomia, à independência e à responsabilidade, qualidades que devem ser preservadas e reforçadas.
Felicito os vencedores do Prémio Nacional de Jornalismo 2021, nas suas respetivas categorias, bem como os colegas distinguidos com Menção Honrosa, pelo reconhecimento da qualidade dos trabalhos apresentados. Nas sucessivas edições deste prémio, tem-se promovido o mérito e o bom desempenho. Exorto todos os jornalistas a prosseguirem na defesa de uma informação isenta, com rigor e objetividade, tendo em vista que a combinação entre liberdade de imprensa e bons jornalistas é virtuosa e potenciadora de excelentes resultados.
É sempre de realçar que Cabo Verde muito se orgulha da Democracia e da liberdade de imprensa, duas das maiores e indissociáveis conquistas desta sociedade, sendo inconcebível que uma possa existir sem a outra. Ambas estão garantidas na Constituição da República e devem ser defendidas e reforçadas. Os jornalistas serão os seus máximos guardiões, colocando-se na linha da frente em defesa das liberdades, separando facto de opinião, e podendo exercer a profissão sem qualquer tipo de constrangimento.
Eugénio Tavares, Luís Loff de Vasconcelos, José Lopes, Pedro Cardoso, Abílio de Macedo, Jaime de Figueiredo e Félix Monteiro, corajosamente e através da imprensa, foram capazes de reportar e denunciar as mazelas do período colonial, com os condicionamentos da época, não raras vezes na ausência de liberdade e quando o jornalismo ainda não era profissão.
Hoje a realidade é bem diferente, para melhor, pelo que há que aproveitar as conquistas derivadas da vivência num Estado de Direito Democrático e fortalecer a liberdade de imprensa, que é um dos seus principais pilares. Mais de duas centenas de jornalistas no ativo, com carteira profissional, e com muitos a serem formados em universidades cabo-verdianas, exercendo a profissão em liberdade, é expetante que o produto final seja de qualidade.
A par dessa melhor qualificação e da constante evolução das tecnologias de informação e comunicação, há que realçar o papel desempenhado por uma autoridade reguladora, que funciona e está atenta. O seu desempenho tem sido meritório, principalmente em períodos de campanha eleitoral, visando assegurar o respeito pela Constituição, com destaque para a liberdade de imprensa, o direito à informação e o confronto das diversas correntes de opinião.
No que se refere ao Conselho Geral, as nossas expetativas vão no sentido de que sejam criadas as condições para uma efetiva autonomia e independência.
Os indicadores relativos à liberdade de imprensa são bons, mas deveremos continuar a trabalhar para evitarmos eventuais retrocessos e recuperar posições no ranking a nível dos indicadores de liberdade. Tenho a consciência de que há algumas questões que precisam ser discutidas, sempre no pressuposto de que deveremos tirar o maior proveito da liberdade de expressão e da liberdade de imprensa, como está garantido na Constituição da República.
A informação livre e plural é essencial à prática da Democracia. Devemos admitir que a boa governação será sempre tributária de uma atitude fiscalizadora de uma imprensa livre e pluralista. Neste campo, o contributo da comunicação social tem sido fundamental pelo seu papel na consolidação do Estado de Direito Democrático, desde já por contabilizar um leque razoável de órgãos e, conseguintemente, mais pluralismo. Isto concorre para expressar os dissensos da sociedade, moderar o debate político dos diferentes atores e contribuir para a construção de consensos.
É de se congratular com o facto de, paulatinamente, a presença dos jornalistas na gestão, na redação dos órgãos e nas editorias, ter aumentado. Por outro lado, espero que, sempre que seja possível e onde ainda não é esta a realidade, que se proceda à eleição de conselhos de redação nos respetivos órgãos.
Temos de enaltecer a forte participação dos jornalistas nos momentos eleitorais, bem como a sua contribuição para a formação de uma opinião pública cada vez mais esclarecida. São eles que, com o seu papel mediador, com eficácia, enquanto as forças políticas e os candidatos concorrentes se empenham nas campanhas, produzem uma informação compreensível, rigorosa e de qualidade, para elucidar o eleitor a melhor decidir na hora de fazer a sua escolha.
Mas a necessidade de o cidadão estar mais bem informado, não é só na hora de votar. Ele precisa de melhor conhecimento, que o jornalismo também tenha um carácter educativo, pedagógico e formativo, obviamente, para além de informar. Essa vertente de informação para a cidadania tem sido particularmente evidente no envolvimento destes profissionais nas mais diversas campanhas de sensibilização contra as epidemias, trabalho infantil, VBG, combate ao alcoolismo, entre outras.
Outro aspeto que merece ser realçado é a forma como a comunicação social tem feito deste país diasporizado, uma nação global, construindo, a cada dia, o sentimento de unidade nacional, aproximando a grande família caboverdiana, encurtando distâncias entre os que estão cá e aqueles que estão lá longe.
Porém, ao mesmo tempo que testemunhamos avanços e muitos aspetos positivos, registam-se algumas debilidades no sector da comunicação social em Cabo Verde, a exigir reflexão e análise com vista a serem encontradas soluções capazes de responder de uma forma mais eficaz aos constrangimentos de que o sector ainda padece. Nota-se, por exemplo, uma excessiva monopolização do espaço (rádio e televisão) pelos órgãos estatais, que são dominantes.
Outro aspeto que é transversal, quer falemos do público ou do privado, rádio, televisão ou jornais, podendo as situações ocorrerem com maior ou menor gravidade e cada qual com a sua especificidade, é como garantir a sustentabilidade financeira do setor. Como em tudo, também aqui a relação entre receitas e despesas é muito importante. Pela sua relevância no processo de desenvolvimento de Cabo Verde e para se garantir o pluralismo, a comunicação social, em geral, carece de mais apoio do Estado.
Do conjunto de questões a merecerem alguma atenção, debate e reflexão, podemos destacar o montante e os critérios para a distribuição dos subsídios; a problemática relacionada com o mercado da publicidade, revisão das regras relativas à sua distribuição e os recursos gerados; a contratualização de serviço público a órgãos privados; o transporte dos jornais e o “porte pago”, etc.
De salientar que dificuldades no acesso a um jornal impresso ou ao sinal da televisão, que possam ocorrer em determinados pontos do território nacional, significam assimetrias e desigualdades que é preciso combater e corrigir.
Prevalece, na verdade, a fragilidade dos órgãos privados, muitas vezes, beirando o limite da sobrevivência e da impossibilidade. Muitos desses órgãos têm funcionado graças à carolice, ousadia, teimosia, tenacidade e resiliência, tentando superar os enormes obstáculos e constrangimentos. A tradição dos órgãos privados é muito antiga, de uma importância histórica e de grande relevância para o nosso país. A sua vitalidade é também a vitalidade da democracia, pelo que, para garantir o vigor democrático, torna-se necessário um outro olhar, de forma a romper com a situação atual. Só teremos uma melhor democracia se conseguirmos a afirmação de toda a comunicação social, nomeadamente da privada. Afigura-se adequado mobilizar parcerias para que o setor privado possa afirmar-se.
Para a imprensa privada é indispensável um maior apoio do Estado visando a criação de um ambiente legal mais amigo e favorável ao desenvolvimento e à afirmação desse setor, da mesma forma que dos principais atores políticos se espera que tudo façam, visando o crescimento da comunicação social privada.
Há que ter também em conta a dimensão do mercado e há que considerar o serviço prestado pelos media privados como sendo igualmente de utilidade pública. Estou convencido de que, se consolidarmos o setor privado da comunicação social, teremos muito mais vigor espiritual, teremos uma democracia de mais qualidade e um ecossistema intelectual capaz de contribuir para acelerar o passo no processo de transformação de Cabo Verde.
Em Cabo Verde, reina um amplo consenso segundo o qual o debate político tende infelizmente a ser raso e, sobretudo em época de campanha eleitoral, ele estriba-se em fake news, fica mais fulanizado, crispado e inconsequente. Isto porque a sociedade caboverdiana é excessivamente partidarizada, o que também prejudica a afirmação da comunicação social. Outro fenómeno, geralmente associado aos jornais online, é a forma como, a coberto do anonimato, muitas pessoas são difamadas, insultadas e ofendidas, com total impunidade. Isto é uma utilização perversa e irresponsável da liberdade de expressão, confundindo-a com uma espécie de ‘liberdade para agredir’.
Assim, apelo às senhoras e aos senhores Jornalistas para, no que estiver ao vosso alcance, tenham uma atitude pedagógica e impeçam essa atitude covarde de assassinato do carácter das pessoas, de forma a contribuir para melhorar o ambiente político e torná-lo mais distendido.
A Unesco escolheu para as celebrações deste ano, e de forma muito acertada, o lema “Jornalismo sob vigilância”. Durante muito tempo admitimos que a democracia, tal como a liberdade de imprensa, poderiam ser conquistas irreversíveis e que não corriam perigo. Mas fenómenos recentes, como um entendimento muito esdrúxulo do que seja liberdade de expressão, as “verdades alternativas”, os discursos do ódio e outros perigos, são sinais de alerta muito preocupantes e que devem merecer a atenção de todos, para um djunta mon em defesa da democracia e da autêntica liberdade de expressão.
Constata-se, ainda, infelizmente, uma excessiva dependência da sociedade e do cidadão em relação ao Estado, sendo que essa dependência é extensiva às empresas, mormente aos órgãos de comunicação social públicos que, no meu entender, estão excessivamente governamentalizados. Esses órgãos precisam de maior autonomia e independência, ou seja, há que desgovernamentalizar, o que, decerto, irá diminuir ou mesmo eliminar as referências à autocensura constantes em sucessivos relatórios referentes à liberdade de imprensa. A autocensura existe e justifica-se porque há algum medo, atendendo a que o Estado é o maior empregador, com capacidade de influência em todas as fissuras da nossa sociedade, com a agravante de, tanto no público como no privado, muitos jornalistas trabalharem com contratos precários. Há que criar as condições para se pôr termo à autocensura e ao medo.
Cabo Verde é um país democrático e os profissionais da comunicação social têm de poder exercer a sua profissão sem quaisquer constrangimentos. Mas há queixas de jornalistas que reclamam da postura das instituições, entenda-se, dos órgãos governamentais, de um hermetismo injustificado, de falta de cooperação e de prestação de informação. Esta atitude de resistência e desconfiança prejudica o trabalho do jornalista na busca da verdade e da verificação dos factos.
O problema do acesso às fontes e do segredo de justiça atingiu, ultimamente, novas e inusitadas proporções, o que tem causado alguma estranheza entre a classe de jornalistas, que interpreta certos episódios ocorridos com colegas e órgãos de comunicação social, como uma tentativa de silenciamento e de cerceamento da liberdade de informar. Esses “ruídos” são reais e suficientes para se provocar um debate alargado com vista à clarificação da situação em termos de legislação, nomeadamente em relação ao código do processo penal. Na minha opinião, não cabe aos jornalistas e aos órgãos de comunicação social o dever de preservação do segredo de justiça. Justifica-se, pois, uma clarificação de molde a que os Jornalistas não sejam abrangidos por uma injunção legislativa que a eles não se destina e, assim, a Imprensa não seja condicionada no seu dever de informar, de promover a transparência e o reforço da democracia num Estado de Direito Democrático.
A sociedade caboverdiana tende a ser cada vez mais complexa. Daí a necessidade de fazer a mediação, de explicar a multiplicidade de notícias de uma realidade, também ela, cada vez mais complexa, e que exige dos profissionais maiores conhecimentos para poderem fazer um jornalismo de excelência e especialização conforme as áreas de intervenção profissional. Felizmente, hoje o acesso à formação é mais facilitado, quer em jornalismo ou noutras áreas, já que as nossas universidades proporcionam oportunidades de formação em vários domínios e diversos níveis.
Por outro lado, quando as circunstâncias assim o exigem, justifica-se a atuação do jornalista como contrapoder, em defesa dos valores mais altos, quais sejam a transparência, a credibilidade e a busca da verdade. Só um meticuloso jornalismo de investigação para levar a cabo um aturado trabalho de avaliação das fontes de informação e de verificação dos factos. Mas esta é uma empreitada que exige recursos humanos e financeiros e, principalmente estes, nem sempre disponíveis na maioria dos órgãos e em especial nos privados.
É imperioso que Cabo Verde acelere o passo, que rompa com as práticas atualmente existentes, para que o país possa dar o salto. Para exemplo, sem a aposta numa formação especializada, os nossos profissionais de comunicação poderiam experimentar dificuldades em lidar com incidências de um mundo globalizado, sobre uma sociedade aberta e interativa como a nossa, porém, num espaço pequeno, arquipelágico e em rápido processo de transformação. Temos de ter consciência de que, a todos os níveis, as mudanças terão de ser profundas e radicais.
A alternativa é mudar ou mudar. Ou seja, mudar ou regredir. Perfila-se uma “nova ordem mundial” e um novo vigor social e há que poder contar com uma comunicação social à altura dos desafios futuros. Esse é o caminho e não temos como vacilar.
Declaro aberta a Conferência Nacional Alusiva ao Dia Mundial da Liberdade de Imprensa 2022!
Muito obrigado pela vossa atenção!