PR convida novas gerações a continuarem a cumprir o sonho de Cabral

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PR convida novas gerações a continuarem a cumprir o sonho, inspirando-se no legado de Cabral
Sonhar e projetar Cabo Verde para mais 50 anos será uma forma de homenagear Amílcar Cabral, sugeriu, hoje, o Chefe de Estado, em Santa Catarina, durante a solenidade que marcou, neste dia dos Heróis Nacionais e da Nacionalidade, os 50 anos do assassinato de Amílcar Cabral.

O Presidente da República considerou venturosa a oportunidade de poder homenagear Cabral, a poucos passos de Achada Falcão, onde Amílcar passou parte da sua infância e, decerto, em contato com histórias de revoltas de rendeiros e de muitas injustiças que aconteciam nessa época.

Hoje, mais do que nunca, é preciso ter a generosidade de Cabral, ter comprometimento com o país, uma ética republicana e ética na governação, ressaltou José Maria Neves, ciente do percurso já efetuado, mas também dos desafios, pois que os tempos são outros.

O Chefe de Estado aproveitou a ocasião para “render uma justa, singela e merecida homenagem à geração de Cabral, particularmente àqueles que com ele lutaram, que vieram da luta de libertação, das universidades, das prisões coloniais e se engajaram de corpo e alma para materializar o sonho de Cabral, assumindo as rédeas da governação e ocupando outros cargos de direção do país recém-independente.

“Compete, agora, a esta geração se inspirar na geração de Cabral ter a mesma disponibilidade, prosseguir com o facho e cumprir o sonho”, desafiou o Mais Alto Magistrado da Nação, lembrando que “quanto mais confiarmos nas instituições e menor for a perceção de corrupção mais estaremos a honrar Cabral”.

Neste tempo de elevada crispação, o Presidente da República recorda “a forma vigorosa” como aquele pedagogo, estudioso, cientista social e formador “incentivava a reflexão e o debate de ideias para se encontrar soluções” e pontos de entendimento, com base no diálogo.

Por outro lado, sublinha, o pensamento de Cabral, ao defender uma atitude ética, a decência, o patriotismo, a honestidade na governação, permanece atual.

“Cinquenta anos depois, … a melhor forma de honrarmos a memória de Cabral … é pelo comportamento, pela atitude, pelos valores defendidos pelos dirigentes, e por governarmos com decência, honestidade e patriotismo”, disse José Maria Neves, para quem Cabral continua a ser uma fonte de inspiração para os desafios do nosso tempo.

Leia o discurso na íntegra, aqui:

Neste dia dos Heróis Nacionais e da Nacionalidade, congratulo-me com esta venturosa oportunidade de poder homenagear Cabral, em Santa Catarina, no coração de Santiago, e com o simbolismo de estarmos a poucos passos de Achada Falcão, ao tempo terra de morgados, onde Amílcar passou parte da sua infância e, decerto, tomou contato com histórias de revoltas de rendeiros e de muitas injustiças que aconteciam nessa época. É deveras acertada a escolha de 20 de janeiro como o dia dos Heróis Nacionais. Faz justiça a este grande homem da história contemporânea da Guiné Bissau e de Cabo Verde, da África e do mundo.  

Para Cabo Verde é um grande orgulho ter um farol dessa dimensão como filho. Pela sua grande estatura, Cabral é consensual entre nós, sem ter que, necessariamente, ser unânime. Estando muito à frente do seu tempo, visionário, gerou paixões, provocou ruturas, pois, nem sempre é fácil ter razão antes do tempo. Mas o seu reconhecimento é global. É considerado um grande líder africano cuja luta pela independência de África também contribuiu enormemente para transformar Portugal e teve impacto na humanidade.

Atualmente, mesmo podendo não encontrar todas as respostas em Cabral, os tempos são outros, ele continua a ser uma grande fonte de inspiração. Sonhar e projetar Cabo Verde para mais 50 anos será uma forma de homenageá-lo. Hoje, mais do que nunca, é preciso ter a generosidade de Cabral, ter comprometimento com o país, uma ética republicana e ética na governação. Desde a independência, fizemos um percurso, de um país improvável, passamos a ser um país possível, com uma democracia representativa que funciona; embora ainda persistam enormes dificuldades e desigualdades, sempre continuamos a perseguir os nossos sonhos e por eles bater.

Passados 50 anos sobre o trágico 20 de janeiro de 1973, permitam-me render uma justa, singela e merecida homenagem à geração de Cabral. Refiro-me àqueles que com ele lutaram, que vieram da luta de libertação, das universidades, das prisões coloniais e se engajaram de corpo e alma para materializar o sonho de Cabral, assumindo as rédeas da governação e ocupando outros cargos de direção do país recém-independente. Mesmo discordando de certos aspetos, há que reconhecer a coragem, a entrega total, apaixonada e incondicional no arranque do novo país. Compete, agora, a esta geração se inspirar na geração de Cabral, ter a mesma disponibilidade, prosseguir com o facho e cumprir o sonho.

Recuando no tempo, e por falar em heróis, temos que falar do heroísmo do cabo-verdiano, desde o momento inicial, numa luta desigual com uma natureza tão agreste. A falta de recursos naturais dificultou, atrasou e condicionou o povoamento do arquipélago, que se processou de forma diferente do que aconteceu nos Açores e na Madeira. Aqui se deu o cruzamento de europeus e africanos, resultando numa língua e cultura próprias e na gestação da nação caboverdiana.

E não tardou muito para que os primeiros “filhos da terra”, já conscientes da sua cabo-verdianidade, começassem a reivindicar mais dignidade de tratamento, mais direitos e igualdade no acesso aos cargos públicos. Eram sucessivas as queixas relativas aos abusos e discriminações por parte dos representantes do Reino. O anseio pelo desenvolvimento mantém-se, a par com o crescimento dessa consciência crítica e contestatária, que teve, nos finais do Século XIX e inícios do Século XX, como principais figuras Luís Loff de Vasconcelos, Pedro Cardoso, Abílio Macedo e Eugénio Tavares. Esses nacionalistas viveram o espírito da época e foram os rostos que estiveram na linha de frente das reivindicações, sempre defendendo o melhor para Cabo Verde.

De recordar igualmente que os finais do século XIX e inícios do século XX foram férteis em revoltas populares, com destaque para as revoltas da ribeira dos Engenhos, de Achada Falcão, de Ribeirão Manuel, em Santiago, e, mais tarde, a revolta do capitão Ambrósio, em São Vicente. É o retrato de um povo que, com heroísmo, enfrenta a agressividade da natureza e a opressão de um regime, as quais, conjugadas, resultam em condições socioeconómicas extremamente difíceis, contra as quais lutam teimosamente, inventando um país, todos os dias.

Mais tarde, o papel aglutinador caberá aos claridosos, que com a sua literatura, denunciam e exigem um tratamento de maior dignidade para Cabo Verde. Contribuem para iluminar os caminhos da luta pela liberdade, pela democracia e pelo desenvolvimento. A concretude dos sonhos de várias gerações chegará, com Cabral e a sua liderança genial. Ele foi capaz de fazer a síntese desse heroísmo, materializando o que antes era uma ânsia de conquista de dignidade, transformando o que era impossível ou difícil em realidade.

Já na década de cinquenta, Amílcar Cabral estava convicto de que só a independência seria a solução. Para ele, a razão fundamental da luta era a dignidade da pessoa humana. E realizar a dignidade dentro do quadro colonial não seria viável, pelo que se deveria lutar, até ao fim, pela liberdade, afastando em definitivo o cenário de subjugação. Não queria continuar a presenciar a indignidade de guineenses a serem açoitados e de cabo-verdianos a morrerem de fome.

Era preciso Cabo Verde alcançar a independência para combater as fomes. Só assim, livremente, traçaria o seu destino, construiria a sua história rumo ao progresso e ao desenvolvimento. Na altura, foi uma ousadia, um grande salto, pois, Cabral quis ir mais longe, até ao limite, para que os cabo-verdianos reconquistassem a sua dignidade. E hoje está provado que Cabral estava coberto de razão. Temos que reconhecer que ele tinha uma visão de arquiteto: ao conceber um projeto, já vislumbrava a obra, operando na plenitude e em detalhe, enquanto outros ainda duvidavam se tal seria exequível.  

Cabral lutou pela independência, mas na certeza de que esta não seria um fim em si. Para ele, a independência teria um significado: senhores do seu próprio destino, era imperativo que os cidadãos tivessem melhores condições de vida. Era a forma de legitimação da luta pela independência. Se, depois, as pessoas não passassem a viver melhor, não teria valido a pena: “A independência em si é um ato de fecundação da história que deve traduzir-se no momento da vitória por um salto em frente do povo que se liberta. Se tal não se verificar, então os esforços e sacrifícios realizados no decurso da luta terão sido vãos. Esta terá falhado os seus objetivos, e o povo terá perdido uma oportunidade de progresso no âmbito geral da sua história”.

Infelizmente, ainda na década de sessenta, Amílcar Cabral já manifestava a sua angústia perante a experiência de algumas independências africanas, menos conseguidas, por revelarem problemas sérios. Perante a fragilidade institucional dos nossos países, ele tinha uma grande preocupação com os valores, insistindo sempre que os dirigentes deveriam ter uma atitude ética inatacável.  No caso concreto dos territórios libertados na Guiné Bissau, era essa a atitude defendida para a sua administração, e, na fase posterior, com a conquista da independência.

O nosso homenageado sempre quis que a independência fosse um processo negociado, com as autoridades coloniais, disposição reiteradamente manifestada, desde os anos cinquenta. Essa oportunidade de diálogo foi sistematicamente rejeitada; rejeição que, dolorosamente, ditou a via da luta armada. Porém, Cabral manteve-se sempre disponível para dialogar e negociar, defendendo que, conquistada a independência, deveriam ser construídas as mais sólidas e especiais relações de cooperação e amizade entre estes novos países e a potência colonizadora.

Amílcar Cabral tinha afeto por Portugal e soube sempre distinguir o povo português e o regime colonialista, tendo mesmo afirmado que a luta de libertação nacional, sendo imposta e inevitável, seria sempre contra o regime e nunca contra o povo português, e que iria contribuir para a democratização de Portugal, aliás, como se veio a verificar com os acontecimentos que tiveram lugar a 25 de Abril de 1974. Em suma, Cabral lutou pela liberdade e independência da África e pela democracia em Portugal. Por outro lado, sempre realçou que a língua portuguesa era a maior herança que nos foi deixada.

A homenagem de hoje é igualmente ao pedagogo, estudioso, cientista social, especialista, formador, para quem a luta deveria ser um lugar de formação, formação para a cidadania, e as reuniões eram espaços para aprendizagem. Defensor da igualdade e da equidade de género, empenhado na causa da emancipação das mulheres, elas tiveram papel de relevo, tanto na arena política e diplomática, como no campo militar. Mas também se homenageia o humanista, pensador, e ainda militante contra a pobreza, a fome e a indignidade. É uma homenagem ao diplomata, soldado das causas da ONU; que é recebido pelo Papa e recebe nos territórios libertados uma missão da ONU; defensor do Direito Internacional, da solução negociada dos conflitos e paladino do multilateralismo.

Homenageamos o teórico e prático, o político pragmático, com uma visão peculiar sobre ideologia, que era traduzida por liberdade, igualdade e justiça social.  Essencialmente, buscava as melhores soluções, uma vida mais digna para os povos da Guiné Bissau e Cabo Verde, libertos da subjugação e construindo uma pátria mais digna para todos, independentemente das ideologias. Avesso a rótulos, defensor da autonomia de pensamento e de ação, não é por acaso que o novo Estado é simplesmente República de Cabo Verde. Nem Popular, nem democrática.

Um dos principais traços da personalidade de Cabral é a forma vigorosa como incentivava a reflexão e o debate de ideias para se encontrar soluções. Até à morte, sempre defendeu o diálogo, e que as questões deveriam ser discutidas, que as soluções deveriam ser encontradas a partir do debate; que sendo a política, contradição, é mister dialogar, discutir e encontrar pontos de entendimentos, descobrindo a verdade a partir da discussão dos diferentes assuntos.

O pensamento de Cabral, ao defender uma atitude ética, a decência, o patriotismo, a honestidade na governação, permanece atual. Ele viveu o espírito da sua época. Mostrou estar sempre à frente do seu tempo, e temos que admitir, trouxe a modernidade política a Cabo Verde. Sintetizou as aspirações e os sentimentos dos povos africanos da altura, na linha da negritude, dos congressos pan-africanistas, das lutas de libertação, da criação das Nações Unidas e da Declaração dos Direitos Humanos. Tinha profundas preocupações institucionais, como ficou patente no seu empenhamento para a realização das eleições nas zonas libertadas da Guiné Bissau, para escolha da Assembleia Nacional, cujo presidente eleito deveria proclamar a independência, como efetivamente veio a suceder, mas que, infelizmente, ele já não pôde testemunhar.

Cinquenta anos depois, estou plenamente convencido de que a melhor forma de honrarmos a memória de Cabral é, como ele sempre referiu – e nós já aqui mencionamos – é pelo comportamento, pela atitude, pelos valores defendidos pelos dirigentes, e por governarmos com decência, honestidade e patriotismo. Temos uma fonte de inspiração que pode dar um contributo forte para enfrentarmos os desafios do nosso tempo e assumir a construção do país como um assunto de todos nós, como fez Cabral, no seu tempo.  Esta nação é, no fundo, uma incumbência de cada cidadão cabo-verdiano. Para um Cabo Verde muito mais desenvolvido, há que empoderar o cidadão e a sociedade. Temos que perder o medo das amaras e ousar, tal e qual a geração de Cabral, que se entregou de corpo e alma à causa da libertação nacional. E quanto mais confiarmos nas instituições e menor for a perceção de corrupção mais estaremos a honrar Cabral.

Honra e glória à memória de Amílcar Cabral!

Muito obrigado!