Discurso proferido por sua Excelência, o Presidente da República, Dr. José Maria Neves, por ocasião da sessão solene dos 50 anos do 25 de Abril

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Minhas Senhoras e meus Senhores,

Agradeço ao Senhor Presidente Marcelo Rebelo de Sousa por este honroso convite para vir participar nas celebrações do Cinquentenário do 25 de Abril.

Desejo, aliás, realçar o facto de estas celebrações juntarem em Lisboa, palco central dos acontecimentos de 1974, os mais Altos Representantes de Portugal e de todas as então suas antigas colónias, o que é muito simbólico. Reconfortante, também. Celebramos, na verdade, aquele que foi um momento de viragem na história dos nossos povos e nações. O 25 de Abril é um património coletivo, de que nos orgulhamos, pois que, nas diversas frentes, em graus variáveis e mais ou menos decisivos, a contribuição foi de todos, para o sucesso das ações do Movimento dos Capitães nessa memorável madrugada.

Assinalar o 25 de Abril é um dever de memória. Para que não se esqueça! Ou seja, é preciso recordar para que não se repita um passado que se quer distante. Manter e perpetuar Memória equivale igualmente a transmitir aos mais jovens a nossa História comum, com verdade, com distanciamento, com apego aos valores supremos que o Espírito de Abril tão bem incorpora e ilumina. Falo da Liberdade e da Dignidade da Pessoa Humana. Falo da Paz também, naturalmente. A Paz, esse valor tão impunemente espezinhado nos dias que correm, com a desvairada deriva para os ‘jogos de guerra’ entre Estados.

Urge lembrar sempre que a Revolução de 1974 pôs termo a um colonialismo serôdio, um verdadeiro anacronismo às portas do último quartel do século XX. Foi o desfecho de uma crise agónica, sinónimo de guerra colonial, de presos políticos, de Campo de Concentração do Tarrafal, do arbítrio, da perseguição, do medo, do exílio, da ausência de liberdades, da injustiça e da censura. Sinónimo também de orgulhoso e claudicante isolamento, de pobreza e êxodo de populações desesperançadas, de reiterada sonegação do direito coletivo ao Desenvolvimento.

Com a Revolução dos Cravos, inaugurou-se uma nova era, muito na linha do sonho de Amílcar Cabral, cujo centenário se celebra este ano. Ou seja, conquistada a independência, deveriam ser construídas as mais sólidas e especiais relações de amizade e cooperação entre estes novos países e o Portugal democrático. Ainda bem que o relógio da história avançou e se inaugurou um novo tempo, com vontade mútua, infelizmente não muito comum nos tempos que correm, de reforço contínuo das relações.

Meio século depois desse fantástico acontecimento histórico, temos todos razões de orgulho e reconforto. Caiu um regime que a todos oprimia e nasceram novos Estados soberanos. A minha geração é grata aos Capitães de Abril, aos Antifascistas e aos Movimentos de Libertação, cujas ações confluíram para que, de uma longa noite, germinasse uma radiante primavera. Mais, o impacto do 25 de Abril ultrapassou as fronteiras de Portugal e destes novos Estados, afirmando-se como um farol, inspirando e impulsionando a terceira vaga das democracias que se espalhou pelo mundo.

É tempo de pensarmos agora nos nossos sonhos para os próximos 50 anos.

Na verdade, no dealbar do século XXI, surgem sinais que despertam, naturalmente, muita preocupação. Há um sentimento de que a democracia está a ser carcomida, assiste-se a um recuo efetivo e a fortes ameaças.

A globalização tem conduzido ao empobrecimento e compressão da classe média, nos países desenvolvidos, e ao aumento das desigualdades entre e nos diferentes países. Tem havido, por outro lado, um aumento da polarização social e política – os consensos são cada vez mais difíceis -, a fragilização das instituições que são importantes instrumentos de intermediação entre o Estado e a Sociedade e participantes destacados na formação de políticas públicas. Constata-se, ainda, uma manifesta incapacidade dos governos em responder à complexidade da ecologia política e às demandas e exigências dos cidadãos e da sociedade civil. 

Se nos países desenvolvidos tal quadro tem possibilitado o alastramento do populismo, do nacionalismo, da xenofobia, do racismo, do repúdio a imigrantes, e adubado a crise dos partidos políticos, a pregação da antipolítica e do antiliberalismo, bem como de teses negacionistas, a disseminação de fake news e do discurso do ódio, nos países pobres, lá onde as instituições são mais débeis, tem resultado em ruturas constitucionais e na assunção do poder pelos militares.

É notório um certo desencanto e uma degenerescência dos partidos políticos tradicionais, da política e das políticas. Os eleitores mostram-se cada vez mais céticos sobre a saúde das suas democracias e questionam se os seus governos foram eleitos de forma transparente.

Sucede que, lá onde as instituições são fortes e há separação de poderes, há mais garantia de defesa da democracia. Temos que defender mais espaços de participação dos cidadãos no exercício do poder político, para que as decisões expressem melhor os seus desejos e sentimentos e os da sociedade civil. Há que pensar como proteger a democracia, como agir para que as instituições cumpram a sua missão e sejam fortalecidas, como reforçar o papel dos partidos políticos, enquanto pilares da democracia, e como fazer com que eles cumpram o papel que lhes é reservado no jogo democrático. Vejo a necessidade e a importância de uma maior literacia democrática de forma a melhor combater um certo amorfismo da sociedade civil e a propagação do discurso do ódio, e aumentar a confiança nas instituições políticas.

Nestes tempos disruptivos, em que as tecnologias informacionais estão a provocar mudanças radicais nos paradigmas de governança e de relacionamento entre o Estado e a Sociedade, em que as guerras geoestratégicas, as migrações e a emergência climática colocam novos e enormíssimos reptos à humanidade, é essencial recriar um sistema de governança global capaz de regular os conflitos, as migrações, as questões económicas e financeiras e a inteligência artificial.

Que as reflexões a que nos obrigam estas comemorações sejam fontes de novas luzes para iluminarem os difíceis e complexos caminhos que temos pela frente. Como foi há 50 anos, que este 25 de Abril de 2024 seja um cais de partida para juntos continuarmos a navegar rumo a novas fronteiras, apesar de todas as tempestades.

Lisboa, 25 de Abril, de 2024